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domingo, 27 de julho de 2025

SP, 14 de maio de 2021 (sexta-feira, 02h32)*

domingo, julho 27, 2025 4



A navalha da espada corta tudo o que é onírico e me acende a luz da consciência já perdida. Não é o avassalador que me move a escrever, é o anseio pela tranquilidade que repousa no silêncio compartilhado e nas mãos dadas. 

Eu cresci achando que queria um amor de cinema, que seria um clichê ambulante, desses em que um tromba no outro e a paixão acontece instantaneamente. Eu vivi um amor que acabou como nas tragédias: ele sem memória, sem saber quem sou, sem saber quem éramos. Sufoquei a minha perda, o meu luto e, sobretudo, o meu afeto. Precisava seguir. Demorou muito, mas aqui estou. Aqui caminho. Viva. Viva com ar que enche os meus pulmões e força oxigênio correr pela minha veia.

Anos depois vieram outras pessoas. O que tinha a mesma profissão que a minha; o match do Tinder que atrasou mais de duas horas e o encontro não deu em nada; o cara que flertou de todos os jeitos e surgiu com uma namorada depois que me percebeu apaixonada por ele. Todos hollywodianamente avassaladores. Todos me forçando a nadar e morrer na praia. Logo eu, que não sei nenhum dos quatro tipos de nado.

Estou viva. Cansadamente viva. Quando penso na tarefa de escrever sobre essas feridas me sinto inteira. Hoje elas têm casca, algumas já são cicatriz. Machucados que se fortaleceram porque joguei palavras e mais palavras sobre elas. Oxigênio forçado em cada célula.

Tento me apaixonar gradativamente pela pessoa que vejo todos os dias no espelho. O tempo é implacável e já começa a mostrar os seus sinais. Os cabelos estão diferentes, a pele contém marcas, as rugas iniciam a dominação de território ao redor dos olhos. Há uma dissonância entre a minha mente e o meu corpo. O relacionamento deles já entrou em crise há tempos: a cabeça é jovem, mas os joelhos falam alto com suas dobradiças enferrujadas. "Começa assim sem dor, quando chegar nos 60 a gente conversa", diz minha companheira de aula de Pilates. As areias do tempo teimam em escorrer rio abaixo…

Há mais de um ano que não saio de casa, que não vejo os meus amigos. Tento me lembrar quando foi a última vez que beijei uma boca. Não consigo. A minha relação com o tempo anda mais confusa que a minha vida amorosa. "Todo dia é uma segunda-feira", disse a minha professora de escrita, mas acho que já ouvi outras pessoas falando algo parecido.

Presenciar fatos históricos é algo que sempre me fez me apegar à vida: a morte do Senna, os aviões que caíram perto de casa, a queda das Torres gêmeas, a luta do Mandela. Sempre fui uma espectadora atenta ao meu tempo. Nunca pensei, contudo, que teria que ser participante ativa de um evento que mudaria a vida planetária do avesso, como tem sido esta pandemia. Enfurnada em casa sigo (ontem completei 1 ano e 2 meses em que saí apenas 16 vezes de casa para cumprir tarefas que precisavam de mim impreterivelmente). Continuo sendo categórica na missão de proteger a mim e à minha família. Sigo estrita, restrita, e exaurida.

Minha memória anda tão exausta quanto o meu corpo. Talvez seja por isso mesmo que eu queira muito um relacionamento, mas não mais um amor avassalador. Eu não quero roteiros perfeitos, quero aconchego.

***

Antes de ler sobre a experiência de pessoas negras, eu achava que eu era estranha. Por que eu sempre era a única sozinha? Depois do contato, compreendi tudo. Os pontos se ligaram de um modo que foi só parar para analisar, que fez total sentido. Não à toa todos os caras por quem já tive atração estão se relacionando todos com mulheres brancas, não à toa, o principal deles não quis me assumir, me apresntar para a família e para os amigos. O racismo me atravessa ainda que muita gente não queira me ver como a mulher negra que sou. Existo dilacerada por essa violência que me consome viva todos os dias.

Raised by wolves, stronger than fear**. O Bono sempre grita alguma palavra de ordem na minha cabeça — quer ele queira, quer não. Tento ser maior do que o racismo e continuo lutando. Stronger than fear. Luto por este coração que pulsa insistentemente dentro da minha caixa torácica, ainda que eu ache curioso como os sentidos de guerra e de perda façam simbiose nas quatro letras da palavra "luto". Se verbo, tão repleto de vida; se substantivo, tão cheio de morte; em ambos, tão cheios de dor. A minha cartomante preferida diria que "luto é amor que não tem para onde ir". Talvez por isso mesmo eu escreva, para direcionar o meu amor para o desconhecido que me lê. Sempre amei demais e é isso, o advérbio de intensidade, que tira e, ao mesmo tempo, nutre a minha força.


💚💚💚


*Encontrei este texto nos meus rascunhos da época da pandemia e resolvi compartilhá-lo com vocês.
**Vocês podem ver o U2 cantando Raised by Wolves, clicando aqui (para ler a letra da canção no vídeo, use a função CC/legendas, do YouTube). A música faz parte do álbum Songs of Innocence, lançado em 2014.

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domingo, 18 de maio de 2025

Expectativas desleais (um bom encontro é de dois)

domingo, maio 18, 2025 11
Imagem por Rattanakun.



“Não tenho o que dizer e mesmo se tivesse, são só palavras.”


Que diferença faria? Fátima olhava para a tela do celular meio incrédula. Depois de tantos anos, aquele inferno se repetia: sempre que ela criava um perfil numa rede social nova, Álvaro aparecia. “Recomendações”, “Talvez você conheça”, “Pessoas que seus amigos seguem” ou quaisquer outras versões a que ela chamava de “trago uma porcaria de volta para a sua vida com um click". Não adiantou excluir o número dele do celular, não adiantou apagar todos os e-mails dele do contato, não adiantou destruir todas as trocas. Quase 15 anos depois ele continuava reaparecendo. Ora se gabando do próprio trabalho, ora com um perfil vazio, sem publicação alguma além da foto e do texto do perfil. Um fantasma que se materializava por meio de bytes na rede mundial de computadores. Já Fátima? Bem, ela continuava pesquisando como bloqueá-lo da tal nova rede social do momento. Movimentos cíclicos. Assim a vida seguia. Ou seguiria, porque desta vez foi diferente. Não deu tempo de Álvaro aparecer para ela, não deu tempo de Fátima fazer a pesquisa. O block tão necessário não foi feito com a antecedência preventiva.

Era uma tarde de sábado bem chuvosa, dessas que fazem a cidade toda alagar, transformando tudo em puro suco do caos. Depois de horas entre leituras e séries, Fátima parou para tirar o celular da tomada e foi ali que ela viu a notificação de uma mensagem de alguém que a quem não seguia.


“Oi… Desculpa escrever assim… do nada…. Tem jeito… de a gente… conversar?”


Quase 15 anos depois. Almost fifteen fucking years later. Por quê? O nome de Álvaro parecia brilhar mais do que o comum na tela, embora não tivesse nada de especial. Não deveria ter. Fátima sabia que ninguém ressuscitaria daquela conversa, não haveria milagre saindo das catacumbas. Por mais que ela tenha sonhado com esse momento por anos. Por mais que ela tenha ensaiado mentalmente o que diria em looping. Fátima conhece Álvaro como ninguém. E ele a conhecia a versão dela, que ele matou quando a abandonou, como ninguém.

“Acho melhor não.”


Fátima andou por todo o pequeno apartamento, celular na mão relendo a mensagem de Álvaro, palavra por palavra, sabendo que não havia paz. Mesmo quando o mundo se transformou, e as vidas online e offline passaram a caminhar juntas, nunca houve paz. Não houve paz quando Álvaro nunca quis assumir o relacionamento. Nunca houve paz, quando ele a deixou na mesa sozinha para cumprimentar o amigo, como se ele não estivesse acompanhado. Nunca houve paz quando ele pedia para que ela alisasse o cabelo. Nunca houve paz quando ela abriu mão do sonho de ter gatos só porque ele ama cachorros ou quando disse que teria filhos, mesmo quando ela nunca quis crianças. O ar saiu ruidoso de seus pulmões. Não, não tem mais jeito.

O corpo de Fátima tombou no sofá desolado. Há tempos não pensava nele ou na intervenção divina que os colocasse em contato novamente. Agora ela estava ali, diante das palavras de Álvaro, um Álvaro que estava perguntando se ainda tinha jeito.

“Não tem mais jeito. It's over.

Seria mais fácil bloqueá-lo e sumir do mapa mais uma vez. Mas, onde estava a bendita função de bloqueio? Por que raios as redes sociais não deixam isso às claras? Abriu o Google e iniciou a já atrasada pesquisa, até que a notificação subiu outra vez:

“Eu sei… que você está chateada… eu fiz muita coisa errada… estou tentando corrigir… a vida mudou muito… queria te dizer… o que eu sinto…”

As reticências sem sentido – como sempre, infestando as mensagens como formigas de fogo – irritavam Fátima profundamente. A raiva rápida que corria pelo corpo a fez se levantar para mais uma ronda descontrolada pelo minúsculo espaço. Por que logo agora que a vida estava se ajustando? Por quê? Jogou o aparelho sobre a cama – It’s too much. Pesado demais. – Entrou no banheiro e fez xixi com a porta aberta, a gata a observando de soslaio. Voltou ao quarto, não preciso responder isso agora, pegou uma muda de roupa, retornou ao banheiro e entrou embaixo do chuveiro quente. É só bloquear. Por que tanto cuidado em não sumir do nada, quando o Álvaro sempre esteve cagando pra mim? Maldita responsabilidade afetiva.

Ao sair do banho, uma notificação e uma tentativa de ligação de vídeo fez com que Fátima retornasse à sua pesquisa. Coragem. A vida é feita de coragem.

“Há tantas pessoas especiais por aí, você não precisa de mim.”

“Você não entende… você nunca… entendeu…”

“Álvaro, é melhor que você se cure de mim.”


Finalmente ela encontrou um vídeo-tutorial de 30 segundos chamado “como bloquear um desquerido na nova rede social do momento”. Antes de seguir o passo a passo, voltou ao chat e completou:

“Boa sorte.”

Álvaro está digitando…


Conto inspirado na belíssima canção da Vanessa da Mata com o Ben Harper. 

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domingo, 18 de agosto de 2024

Inabilidade

domingo, agosto 18, 2024 12



Não consigo dormir com barulho de chuva. Acordo às 03:03 com a ansiedade do meio-dia. O fim do inverno traz consigo as águas do recomeço,  e eu fico criando várias cenas sem sentido na minha cabeça. Discursos imaginários de alguém que resolveu transformar viagem em profissão.

Não consigo dormir e penso que a insônia tem se tornado frequente nos últimos dois anos. Logo eu, que sempre fui de encostar e mergulhar nas profundezas em menos de segundos.

Parando para pensar: sempre fui de dormir muito e de sonhar acordada. As imagens quase nunca apareciam vindas do inconsciente. Isso até esses últimos dois anos trazerem a insônia. Ainda sonho acordada — e, por isso, não durmo —, mas tenho sonhado mais dormindo também.

O caos me acompanha em sua intermitência sem fim. É o caos que rasgaa minha pele, me expondo as milhões de moléculas que compõem as células do meucorpo. Não consigo dormir com o barulho da chuva e não posso deixar de sorrir ao me lembrar do seu rosto me encarando na chamada de vídeo que fizemos por uma tela de celular.

Sonhos se convertem em eternidade de verão?

Sinto que sou uma escritora fajuta quando o assunto é redigir novas memórias. Por favor, não me leve a mal: sou boa em racionalizar palavras, mas falho em verbalizar desejos. Falo muito, tanto que me afogo, te afogo, nos afogamos a ponto de você desistir sem tentar.

Sonhos não são eternos. Eles se materializam numa amizade insossa e sem muito sentido.
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domingo, 4 de fevereiro de 2024

Planejadamente fortuito

domingo, fevereiro 04, 2024 12
A gentileza mora no delicado do acaso.


Gostaria de escrever esta crônica para você. Sim, você, destinatário sem nome, sem rosto, sem redes sociais e geolocalização. Esta crônica epistolar, este texto planejadamente fortuito é para você, responsável por esta saudade do que sempre desejei e nunca vivi. Esta crônica é uma declaração de futuro.

Você não sabe, mas há cartas e cartas escritas à sua espera. Não tenho logradouro, número, bairro, CEP, cidade, estado, país ou e-mail para envio, mas como sei que você existe, escrevo mesmo assim. Não só esta crônica, mas meu dia a dia, meus sonhos, meus medos.

Queria te dizer tudo isso pessoalmente. Olho no olho, de peito aberto. Sinto que este momento vai chegar em breve. Enquanto isso não acontece, preparo o terreno. Além de palavras escritas, tenho vocábulos cantados por vozes mais bonitas — ou, ao menos, mais afinadas — que a minha em uma playlist do Spotify. Espero que, assim como eu, você goste dessas músicas e dance a cada nota.

[emoção.]

Às vezes você me vem à mente nos momentos mais aleatórios: enquanto lavo a louça do café da manhã, tricoto um casaquinho de bebê para doar, tomo um banho quente, caminho até o ponto do ônibus, fico com a boca aberta na dentista, preparo o meu chá noturno ou como um chocolate no meio do dia. Quais são, afinal, os seus hábitos? Os seus sonhos? Os seus medos? Minha curiosidade por te descobrir me acalma. A sabedoria popular já diz que é questão de tempo.

[você também observa o céu depois da chuva?
você sempre surge nos finais de tarde, quando o céu muda de cor,
e eu rezo e depois tiro uma foto para fazer um story no Instagram.]

O frio na barriga me faz duvidar se estou pronta — quem está? —, mas não desisto. Não te procuro, porque gosto da surpresa, mas não desisto. Nunca soube desistir. Como um atleta que treina para uma prova importante, me preparo do lado de cá. Um treinamento intenso, desses que me fazem atravessar tormentas, ter dores de cabeça e chorar na terapia — logo eu, que não gosto muito de chorar, muito menos com outras pessoas olhando. Há preparo do lado de cá, porque sempre busquei oferecer o melhor de mim para o mundo e, com você não seria diferente. Assim, para usar um dos clichês mais lidos na internet, também me encontro com o melhor que há em mim.

Há preparo, cartas, músicas, céu, mística e crônica. Há sonhos e recados falando sobre a sua chegada. Há sentimentos e oportunidades. Esperança e fé. Há acaso. Quem sabe na próxima esquina a gente não se encontra? Quando isso acontecer, só me prometa que a gente vai se falar.

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domingo, 8 de outubro de 2023

Descaminhos

domingo, outubro 08, 2023 14
Imagem por StockSnap, via pixabay.


não sei se há motivos, mas escrevo. 
recrio universos onde existem nós:
sempre desejo mais:

há fome e fúria e fogo em cada um dos meus sonhos, 
todos ávidos ao devastarem caminhos por onde passam. 

escrevo, 

ainda que sem motivos,
palavras surdas que talvez nunca sejam bem pronunciadas
— sussurradas ou em ditas em alto e bom som.

de qualquer forma, pé ante pé, dou meus rugidos.
de qualquer forma, insisto e ainda brado o meu encanto:

 sigo amando sem ao menos ter te conhecido.

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domingo, 20 de agosto de 2023

Fissuras

domingo, agosto 20, 2023 8
Imagem por Pexels, via Pixabay.


tudo aparentemente tem a sua fissura.
ela é tão tênue, que muitas vezes não a vemos.
tão brutal, que muitas vezes desmorona.
a vida é feita de fissuras,
rachaduras provocadas por quem menos esperamos e mais amamos.
amargo veneno que nos traz à realidade:
a tal perfeição não existe.
a tal perfeição é exigida justamente numa tentativa de esconder as rachaduras.
apontar o dedo para as falhas do outro e rir delas
é muito mais fácil do que sentar e resolver os próprios incômodos.
quando a gente acha que terapia é só blá blá blá,
muitas vezes é porque falta coragem de se encarar no espelho que revela
todas as nossas falhas.
ninguém é deus,
mas é possível ser honesto.
(por que você não foi?)

meu coração partido me traz crises de ansiedade.
acordo com o coração acelerado à meia-noite, às três da madrugada, às cinco da manhã.
não consigo dormir pensando no quanto as suas inverdades me afetam
e no quanto isso pode mudar a vida de quem mais amo.
mais uma vez é um homem que me mostra que amor e decepção são lados da mesma moeda.
mais um rasgo que fica tatuado na minha pele para eu ter que me virar e cuidar sozinha (ou gastando a fortuna que não tenho em terapia).
eu não aguento mais ter que lidar com as fissuras que os outros deixam em mim.
tento respirar e,

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quarta-feira, 17 de maio de 2023

Sobre ter uma lista de pessoas que nos fazem felizes

quarta-feira, maio 17, 2023 17
Foto feita por mim.


Ontem fui preparar uma xícara de chá antes de dormir. Enquanto a música ecoava nos meus fones de ouvido, o insight veio: Paul McCartney é uma das pessoas que me faz feliz. Esta minha lista — uma das inúmeras que tenho mentalmente e por escrito — é extensa e aleatória: vai desde a minha irmã de coração até o ex-beatle, passando por pessoas do meu dia a dia a gênios que, provavelmente, nunca conhecerei frente a frente. 

Pessoas que me fazem feliz não são necessariamente pessoas que eu amo mais que tudo — embora, muitas vezes essas duas coisas casem. Não, essa lista em específico é composta por gente que acende a minha alma, que me estimula, que me apoia, que acredita em mim mesmo quando eu mesma não estou acreditando, que vibram quando eu realizo sonhos (e sim, há algumas pessoas que amo muito que não se encaixam nesses critérios). Pensar em alguém da lista de pessoas que me fazem feliz é sorrir automaticamente. 

Gosto desta lista porque me lembrar dessas pessoas no momento de caos é importante. Além de me acalmar, elas me servem de farol — são um porto seguro para me inspirar, para pedir um conselho, para ter como exemplo, para obter um lampejo. Elas são ótimas em pensar junto qual é o próximo passo, ao invés de jogar um balde de água fria no processo. São estrelas-guias na nossa jornada. 

Acho bonito que haja pessoas assim: que tomam para si essa postura, essa posição de fazer os outros felizes a partir de como se expressam no mundo. A princípio, eu penso em artistas com suas palavras, com suas músicas, com suas artes, com seus olhares — como disse, Paul me fez dançar sozinha, numa noite fria, enquanto preparava um chá —, mas há também pessoas comuns, que fazem da felicidade uma prática. Normalmente são elas que nos recebem com os olhos brilhando de entusiasmo mesmo que não exista um motivo especial para isso. Elas estão ali celebrando o fato de que estamos vivos, plenamente vivos! 

Pensar nessas pessoas muitas vezes pode parecer um pouco rota de fuga, uma tábua de salvação para os momentos complexos — às vezes, é mesmo! —; porém, mais do que isso, elas me dão aquela fagulha criativa de querer ser assim também: uma revolucionária que transforma o mundo através de pôr amor e gentileza nos lugares por onde passo. No fundo, talvez essa seja a nossa maior missão, o nosso maior propósito enquanto humanidade: ser felizes e inspirar os outros a serem felizes também. 

Olhar para essa lista de pessoas me ajuda também com outro ponto: me compreender. Isso porque é possível mapear o que me alimenta emocional e intelectualmente — que tipo de arte? Que tipo de relações? Qual é a qualidade disso tudo? — e avaliar a quantas eu ando. Houve tempo em que, mesmo sabendo que aquelas pessoas em específico não eram boas para mim, eu ainda as considerava na minha lista de pessoas que me fazem felizes. Nem preciso dizer que isso não foi saudável, preciso? No fundo, ter aquelas pessoas nessa lista falava mais sobre a minha como a minha autoestima andava baixa do que que qualquer outra coisa... 

Tudo isso pode parecer coisa besta, piegas, mas não é. Refletir sobre essas questões me faz pensar em outras fases da minha vida, em como tudo se transformou e continuará se transformando e no quanto eu não preciso lidar com a complexidade da jornada sozinha.

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quinta-feira, 12 de maio de 2022

Probabilidades

quinta-feira, maio 12, 2022 10
Foto por Aldebaran S, via Unsplash.

Qual é a chance de a minha intuição estar certa?
Você vai entrar nesse avião e aparecer aqui.
É possível se declarar?
Há pedidos (de desculpas?).

Não sei se é possível controlar essa vontade.
Também não sei se quero.
Existe perdão pelo não dito? Pelo tempo roubado? Pelos fios de cabelo que ano a ano desceram ralo abaixo?

Nunca chorei no chuveiro. 
Muito menos me debulhei em lágrimas enquanto a série triste era transmitida em um streaming qualquer.
Não.

Não sei se a roda gira.
Não sei se há amor.
Qual é a probabilidade de haver?

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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Aurora

quarta-feira, setembro 15, 2021 10

Foto por Nick Nice, via Unsplash.


As flores mortas no vaso indicam a sua ausência. Há tempos você se foi e ninguém foi capaz de preencher o seu lugar. Não sei ainda quantos meses a frente tenho até arranjar forças para seguir em frente. As flores, no longo e delgado vaso de vidro escuro, pouco a pouco se despedaçam, assim como você fez ao demonstrar que não me ama.

Não sei bem como ou quando o fim se deu. Sei que naquele dia, em que nós dois nos sentamos na escada do jardim do museu, eu sabia que te perderia. Meu choro vindo do nada, totalmente descompassado indicava isso e, por mais que você me abraçasse sem jeito e dissesse que tudo ficaria bem que não me deixaria, eu intuía que algo de errado não estava certo.

Nos últimos meses murchei como murcham as flores em um vaso bonito e sem água. A falta de ar me fez permanecer dias a fio deitada, no quarto escuro, em posição fetal. Em looping, fiquei repassando cada gesto, cada sorriso, me perguntando o que, afinal, eu tinha feito de errado. Logo eu, que sempre me esforço tanto para que tudo seja perfeito, onde poderia ter falhado?

Não sei se ele se recorda do dia em que trouxe essas flores para casa. “Cada uma me lembra um detalhe seu”, ele completou sorrindo de lado, como um superstar, ao notar a minha cara de espanto. O buquê era delicado, e eu não me reconheci ali. Talvez este fosse mais um dos indícios de que nada daria certo. Sempre fui a cabeça dura, que responde todo mundo e que move montanhas pelo que quer. Como poderia ser delicada a ponto de ser flor?

As flores mortas no vaso indicam que algo morreu dentro de mim. A espontaneidade, o cuidar do outro, o sorriso sincero. Cada flor que foi secando me força a me lembrar de cada parte de mim que doei sem medo e sem preocupação. Hoje já não quero mais buques de flores. Hoje prefiro ser jardim na aurora. Se fui flores como ele afirmou, ele esteve longe de ser um amante da natureza.


Texto escrito a partir do tema Já não quero um buquê de flores
da blogagem coletiva de setembro, do Projeto Escrita Criativa.

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quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Carta manifesto da minha recusa

quarta-feira, agosto 04, 2021 14
Foto por Huyen Pham, via Unsplash.


do mesmo modo que você me rejeitou,
eu meu recuso.
me recuso focar nos problemas,
na falta do desejo,
nas discussões do dia a dia.
me recuso pensar
que foi na nossa convivência que eu desejei
e parei de desejar
a maternidade,
que você levou um pedaço grande
que ainda me faz falta no peito
— e que sempre fará.
me recuso, mesmo sabendo
que fui eu que deixei que você levasse esse pedaço,
que a responsabilidade é toda minha.
a maior de todas as recusas, contudo,
é a de permanecer observando
a sua vida de longe enquanto digo que nada acontece por aqui.
isso, meu caro, não é verdade
e não tem porque ser.
meu coração nunca vai deixar de ser inocente e sonhador.
sempre haverá dias em que o amor transbordará.
isso é da minha natureza, e eu a preservo com força
mesmo que signifique perder vez ou outra.
posso ter demorado
— meu ritmo sempre foi distinto —
contudo, saí do fundo do poço e ainda respiro.
meu corpo letárgico passa bem e sonha.
ele deseja todos os toque que você rejeitou,
todas as declarações que você não fez.
meus pulmões se enchem recolhendo mais oxigênio
e meus olhos, tão míopes, se readaptam à claridade.
a superfície é colorida,
eu aceito que ela me envolva.
eu sonho, desejo e mereço.
o sentimento do mundo brota no meu peito:
me rompo e me abro para ele,
porque cada célula de mim é feita de esperança,
de uma esperança apaixonada, dessas que fazem os olhos brilharem
e as palavras se atropelarem de tanta empolgação.
eu sou minha essência e nada no mundo
— muito menos a dor que você me causou —
vai me roubar isso.
meus joelhos se ralaram com a queda,
no meu corpo ainda restaram cicatrizes,
entretanto, essas marcas são exatamente o que elas são.
elas não me definem.

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terça-feira, 11 de maio de 2021

Batalhas

terça-feira, maio 11, 2021 22
Foto por Irina Iriser, via Unsplash.


O trem não para.
Por mais que eu queira dar uma pausa
E que cante com o John a plenos pulmões:
won't someone stop this train?”,
O trem não para.
Não vai parar.

Eu desisto de ir contra o que é a minha natureza,
Eu desisto de me forçar ser alguém que não sou.
Suspendo, no tempo e na distância, o amor exagerado sem reciprocidade.  
Saber desistir também é lutar.

Digo as minhas próprias verdades,
Respeito o meu tempo.
Impor limites também é lutar.
Voltar a respirar na minha própria atmosfera também é lutar.
Acreditar que há um bom amor no meu caminho futuro também é lutar.

Nem toda luta precisa ser amarga.
Passei a escolher bem as minhas batalhas.

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segunda-feira, 15 de março de 2021

Das polaroides, leituras e uma rotina que é só nossa

segunda-feira, março 15, 2021 20
Foto por Laura Rivera, via Unsplash.


Levei seus textos pra cama. Você havia pedido que eu lesse os seus poemas e dissesse o que achei. A tarefa é árdua. Como não gostar de algo vindo de você? 

Levei os seus textos pra cama como alguém que abriga sonhos. Cada linha é uma pérola, pedra preciosa que habita o fundo do meu oceano. 

Levei seus textos pra cama desejosa de te conhecer a fundo. Quis mergulhar no seu mundo numa tomada de fôlego, oxigênio que me mantém viva. Escrever é nossa sobrevivência. 

De tão focada que estava, não percebi você à porta. Despertei com o flash da polaroid que captava o momento em que eu me encontrava mergulhada em suas palavras.

Nossos olhares se cruzaram, e você sorria. Sorria sendo um menino que reencontra a esperança depois de tanto tempo. 

Nossos olhares se cruzaram, e eu sorria. 
Sorria tendo a certeza de que vivia a simplicidade de tudo o que sempre quis.

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quarta-feira, 10 de março de 2021

Casa Vazia I

quarta-feira, março 10, 2021 8
Foto por Foto por Mikita Karasiou, via Unsplash, que mostra uma casa amarela à direita de uma paisagem verde.
Foto por Mikita Karasiou, via Unsplash.


a casa vazia está pronta.
mobiliada e aconchegante,
espera.
vive a angústia sem pressa
de receber quem aqui nunca esteve.

será que ela é destino
para aquele que tanto anseia receber?
ou viverá inabitada
até sucumbir em ruínas?


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quinta-feira, 4 de março de 2021

Segurança

quinta-feira, março 04, 2021 22
Foto por iMattSmart, via Unsplash.


já quis se trancar
em uma angústia
que acorrenta.

até que percebeu
que a melhor fechadura
é a que está quebrada,
a que deixa a porta aberta
simplesmente escancarada.

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domingo, 21 de fevereiro de 2021

Clichê

domingo, fevereiro 21, 2021 10
Foto por Alec Krum, via Unsplash.


Mais uma madrugada em que acordo com uma imagem na cabeça. Estamos ali, nós dois. Eu passando um café fresquinho com seu aroma tão característico percorrendo todos os cômodos. Você deitado no sofá lendo. 

Pego a minha xícara e, sem palavra alguma, me sento no chão. O sol entra por entre as cortinas para se despedir de mais um dia que termina. Não faz nem muito calor, nem muito frio, mas os pássaros cantam. É primavera, e os sabiás alimentam os seus filhotes. 

Não dizemos nada. O jazz toca baixinho na vitrola alguma música instrumental. Com uma mão você continua lendo o seu livro. Com a outra, me faz um cafuné. Eu sorrio. De algum modo finalmente entendo o que o Gil diz quando canta: “a paz invadiu o meu coração". 

Tomo um gole do café, enquanto penso que eu não preciso de muito para ser feliz. Dou graças aos céus que você também não.

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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Como foi o seu dia?

terça-feira, fevereiro 16, 2021 14
Foto do entardecer de 15 de fevereiro de 2021.


Sou alguém que ama compartilhar. Não digo apenas sobre o que sei — algo intrínseco da minha profissão de professora —, mas sim o que sinto, o que vivo, as miudezas da vida.

A partilha mais bonita responde ao como foi o seu dia?. Quando essa pergunta vem da alma, sua resposta é uma declaração de amor, de amizade, de troca. Quando a resposta é sincera, a reciprocidade é entrega à relação que está ali estabelecida — seja ela do tipo que for.

Algumas pessoas veem isso como "dar satisfação". Já eu gosto de pensar que  esse pequeno ritual estabelece vínculo. Não somos obrigados à nada, e justamente por não sermos, que perguntar ou responder a um como foi o seu dia? se torna um gesto de carinho. Em uma sociedade em que tudo é aparente e quase nada é profundo, em que as pessoas estão sempre dispostas a falar, mas nunca a ouvir, se importar de verdade é uma bandeira verde para a construção de laços duradouros.

Virginiana que sou, acabo implementando esse cuidado na rotina com facilidade. Quando me conecto a novas pessoas e sinto que elas são importantes, quando as velhas amizades se tornam cada dia mais fundamentais, com o meu pequeno núcleo familiar. Gosto da rotina de entender como as pessoas ao meu redor estão e de saber se posso ajudá-las a tornar o dia delas nem que seja um pouquinho melhor, um pouquinho mais feliz.

Contudo nem sempre isso é recíproco. Às vezes o cuidar vem com rejeição. Às vezes acompanhar o Big Brother é mais interessante do que perguntar como eu estou ou me sinto. Às vezes é furar a rotina do falar todos os dias por um motivo qualquer. Às vezes é o jeito distraído de quem só pensa em si mesmo. Às vezes, eu não tenho o mesmo grau de importância que essas pessoas têm para mim. Acontece. Tudo na vida é aprendizado (e algumas rejeições são livramento. Doem, mas no final sempre nos levam por melhores caminhos).

Tenho para mim a ideia de que são os pequenos gestos os que mais importam. O como foi o seu dia? é uma minúscula porta que permite que outras pequenas gentilezas entrem na relação — seja ela de que natureza for —, para estabelecer algo maior e mais bonito. E o que é o viver se não justamente construir e fortalecer laços com quem é importante para nós?

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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Entre estar certa e não viver, preferi decidir

terça-feira, novembro 17, 2020 10
Foto por Annie Spratt, via Unsplash.

Ele sabia que era o meu aniversário. Ele sabia que não gosto de festas, mas gosto de estar com os amigos, e que estar com os amigos é estar em festa. Ele sabia que 2020 seria mais difícil, sem poder aglomerar. Ele sabia que eu amo o silêncio tanto quanto a gargalhada que ecoa descompromissada, depois que meus ouvidos ouvem uma piada sem graça.

Mesmo tendo tirado o lembrete do Facebook, ele sabia que aquele era o meu dia. Ele viu a minha publicação nas redes sociais. Ele viu as mensagens que os meus amigos me deixaram. Ele sabia que o meu aniversário é um dia especial para mim. Mas e eu? Eu sou especial para ele?

Silêncio. 
Fim de dia. Agora só na próxima volta ao redor do sol. Estará ele aqui? Ou melhor, estarei eu aqui para ele?

Meses depois, o inverso se deu. Eu sabia que ele adora aniversários, mas finge que detesta. Eu sabia que ele daria uma de esquecido, de rotineiro, de "é só mais um dia qualquer". De fato, para mim era mesmo mais um dia entre todos os outros do ano. E para ele era assim? 

Abri o WhatsApp e escrevi: "feliz aniversário, escorpiano. Feliz volta ao redor do sol". Pensei em dizer "meu escorpiano favorito", mas logo percebi que ele não era meu e estava longe - a anos luz! - do favoritismo. Por que enviaria a mensagem mesmo?!

Queria ter uma prova de que o capítulo estava encerrado e que sim, fiz algo pautado no bem, não no "dar o troco e não dizer nada". Aniversários são para ser lembrados e, voilà, lá estava eu me lembrando como uma boa virginiana sempre o faz.

Mais uma vez, silêncio.

Nem um oi, um "obrigado", ou um emoji sorrindo amarelo. Nada. Palavra alguma preenchendo o espaço e o tempo. Ausência que se materializará até o próximo aniversário?

Provavelmente sim, porque eu sei que eu não estarei mais ali.


O tema da blogagem coletiva de novembro de 2020 foi: coisas não ditas.
Para saber mais sobre o Projeto Escrita Criativaclique aqui.

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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

{Diário de gateira} As gatas e a quarentena

quarta-feira, agosto 26, 2020 18
Poesia e Camomila.

Faz tempo que eu não conto como anda a minha vida de gateira, então resolvi escrever esse post para falar um pouco como estão as coisas.

A última vez que escrevi o meu diário de gateira foi no ano passado (eita!), contando da adoção da Camomila. Sendo assim, deixe aí nos comentário se você quer saber mais de como foi a adaptação dela no último ano.

Minha gata, Camomila, deitada na caminha, encarando a câmera.
Camomila toda observadora.


Minha gata, Poesia, na janela.
A Poesia ama se pendurar assim e cadeiras e grades da janela.


Desde que a quarentena começou, a rotina aqui de casa mudou bastante, várias vezes. Dentre essas mudanças, eu migrei em definitivo para o home office, o que ampliou em sua totalidade o tempo que eu vivo com as gatas.

Minhas gatas, Poesia e Camomila em busca de um solzinho.

Minhas gatas, Poesia e Camomila em busca de um solzinho.
Poesia e Camomila em busca de um solzinho.


É interessante notar como somos parecidas. Detestamos o frio, amamos o sol, pipoca (elas gostam de brincar com a pipoca, não comem!), dormir e ficar juntinho. A Camomila aprendeu a gostar de petisco e agora sempre fica perto do armário antes de dormir. A Poesia tem curtido ficar no colo de novo e agora pede tapinha no bumbum. 

Poesia no meu colo, enquanto eu me preparava para retomar a leitura do Quincas Borba.
Poesia no meu colo, enquanto eu me preparava para retomar a leitura do Quincas Borba.


Estar ao lado delas tem sido o lado bom dessa quarentena. É legal demais vê-las crescendo, se desenvolvendo e aprontando todas! hehehe (Lembrando que vocês podem segui-las no Instagram, clicando aqui).

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domingo, 12 de julho de 2020

A busca pelo conhecido

domingo, julho 12, 2020 24

Pôr do sol. Entardecer visto do meu quintal. Céu alaranjada, roxo e azulado.
Céu mudando de cor, visto do meu quintal. 
Imagem: Fernanda Rodrigues

Passo os dias trabalhando sem sair. Entre um digitar e outro, uma leitura e outra, vou da sala à cozinha, coloco a água para ferver na chaleirinha velha e solto o berro em direção ao quintal:


— Mãããããããe, quer café?


A tarde se esvai enquanto a água segue seu caminho entre o pó e o filtro até fazer morada no fundo da caneca. Observo a fumaça quente e o cheirinho que se espalha por toda a casa. A moradia se converte em aconchego do lar.


Saio para o quintal com minha caneca na mão. Sorvo o líquido quente aos poucos. As gatas dormem em suas caixas de papelão depois de terem corrido muito atrás de seus brinquedos. Estou só  minha mãe já voltou para algum de seus muitos afazeres — mas não estou. Sinto um calorzinho por dentro, que sei que não é só o efeito do café quente. Então, olho para cima.

Vista do entardecer. Céu em tons de azul claro, azul escuro, rosa e laranja.
Céu mudando de cor, visto do meu quintal.
Imagem: Fernanda Rodrigues


O fim do dia sempre foi o meu horário preferido. Agora, em quarentena, ele ganhou um novo significado. Olhar para cima é a minha forma de respiro, o meu sair de casa sem sair, a minha resistência. Ver o céu mudando de cor me lembra de que há vida acontecendo — dentro e fora de mim. O sol se põe me lembrando de que o mundo — ah, o mundo! — ele continua a girar.


De algum modo esta pausa me faz esquecer das incertezas, me afasta do que me dói. A vida não é mais sobre o caos político ou sobre um vírus que mata por onde passa. Não. Durante aquele espaço de tempo de meia hora, quarenta minutos, em que o azul claro se transforma em laranja, em rosa, em roxo até que se escurece de vez, a vida é sobre estar presente e honrar o próprio silêncio. 


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segunda-feira, 4 de maio de 2020

Batalhas

segunda-feira, maio 04, 2020 10
Imagem de komahouse por Pixabay.

Neil Gaiman e Amanda Palmer — o casal mais criativo que eu já vi — se separaram. Não aguento mais ver notícias tristes assim. Não bastou que eles terminassem, ele se mudou de país (ela ficou na Nova Zelândia, e ele voltou para a Inglaterra). Fico pensando em quantas estruturas mais o confinamento e o covid-19 vão desmoronar, então, me lembro das tiragens de tarô que vejo no YouTube: a carta da torre sempre aparecendo, ruindo com todas as estruturas, fazendo cair para recomeçar.

Todo fim é um recomeço. O problema é que as vivências estão todas tão incertas que a sensação que me dá é a de que há um espaço entre os dois pontos que antes costumavam unir as pontas de um círculo, um vácuo entre o término e o recomeço, um tempo em suspenso que separa esses dois não-lugares. O incômodo vem justamente de não se saber qual é o tamanho dessa distância, a força e a intensidade de sua duração.

O Paulo Mendes Campos já foi categórico em dizer que “o amor acaba”. Por mais que eu concorde com ele — tudo o que é frágil se desmancha no ar —, não gosto de acreditar nisso. Minha cabeça, na verdade, é uma grande contradição que vive me dizendo que o amor deve ser leve e fácil, mas que a gente deve lutar por ele (e qual luta é leve, meu Deus?). Fico me perguntando se não é por conta dessa minha complexidade tão paradoxal que eu não consigo ter alguém. Ao mesmo tempo, eu sei que não posso — e, sobretudo, não quero! — abrir mão disso. Sou a essência de alegria e tristeza, prosa e poesia, leveza e luta.

Acordei com uma voz que dizia em meu ouvido: “Me amar é a parte mais bonita do meu corpo”. Não sabia bem o que fazer com esse pensamento, que me pareceu tão real e tão bonito, sendo assim, o eternizei no Twitter e aqui. Acredito que esse lance de “me amar” é algo que vem mais de dentro do que de fora. São elaborações que — ao fazerem sentido — reverberam. Quero amar: vou para a luta com leveza.

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