domingo, 27 de julho de 2025

SP, 14 de maio de 2021 (sexta-feira, 02h32)*




A navalha da espada corta tudo o que é onírico e me acende a luz da consciência já perdida. Não é o avassalador que me move a escrever, é o anseio pela tranquilidade que repousa no silêncio compartilhado e nas mãos dadas. 

Eu cresci achando que queria um amor de cinema, que seria um clichê ambulante, desses em que um tromba no outro e a paixão acontece instantaneamente. Eu vivi um amor que acabou como nas tragédias: ele sem memória, sem saber quem sou, sem saber quem éramos. Sufoquei a minha perda, o meu luto e, sobretudo, o meu afeto. Precisava seguir. Demorou muito, mas aqui estou. Aqui caminho. Viva. Viva com ar que enche os meus pulmões e força oxigênio correr pela minha veia.

Anos depois vieram outras pessoas. O que tinha a mesma profissão que a minha; o match do Tinder que atrasou mais de duas horas e o encontro não deu em nada; o cara que flertou de todos os jeitos e surgiu com uma namorada depois que me percebeu apaixonada por ele. Todos hollywodianamente avassaladores. Todos me forçando a nadar e morrer na praia. Logo eu, que não sei nenhum dos quatro tipos de nado.

Estou viva. Cansadamente viva. Quando penso na tarefa de escrever sobre essas feridas me sinto inteira. Hoje elas têm casca, algumas já são cicatriz. Machucados que se fortaleceram porque joguei palavras e mais palavras sobre elas. Oxigênio forçado em cada célula.

Tento me apaixonar gradativamente pela pessoa que vejo todos os dias no espelho. O tempo é implacável e já começa a mostrar os seus sinais. Os cabelos estão diferentes, a pele contém marcas, as rugas iniciam a dominação de território ao redor dos olhos. Há uma dissonância entre a minha mente e o meu corpo. O relacionamento deles já entrou em crise há tempos: a cabeça é jovem, mas os joelhos falam alto com suas dobradiças enferrujadas. "Começa assim sem dor, quando chegar nos 60 a gente conversa", diz minha companheira de aula de Pilates. As areias do tempo teimam em escorrer rio abaixo…

Há mais de um ano que não saio de casa, que não vejo os meus amigos. Tento me lembrar quando foi a última vez que beijei uma boca. Não consigo. A minha relação com o tempo anda mais confusa que a minha vida amorosa. "Todo dia é uma segunda-feira", disse a minha professora de escrita, mas acho que já ouvi outras pessoas falando algo parecido.

Presenciar fatos históricos é algo que sempre me fez me apegar à vida: a morte do Senna, os aviões que caíram perto de casa, a queda das Torres gêmeas, a luta do Mandela. Sempre fui uma espectadora atenta ao meu tempo. Nunca pensei, contudo, que teria que ser participante ativa de um evento que mudaria a vida planetária do avesso, como tem sido esta pandemia. Enfurnada em casa sigo (ontem completei 1 ano e 2 meses em que saí apenas 16 vezes de casa para cumprir tarefas que precisavam de mim impreterivelmente). Continuo sendo categórica na missão de proteger a mim e à minha família. Sigo estrita, restrita, e exaurida.

Minha memória anda tão exausta quanto o meu corpo. Talvez seja por isso mesmo que eu queira muito um relacionamento, mas não mais um amor avassalador. Eu não quero roteiros perfeitos, quero aconchego.

***

Antes de ler sobre a experiência de pessoas negras, eu achava que eu era estranha. Por que eu sempre era a única sozinha? Depois do contato, compreendi tudo. Os pontos se ligaram de um modo que foi só parar para analisar, que fez total sentido. Não à toa todos os caras por quem já tive atração estão se relacionando todos com mulheres brancas, não à toa, o principal deles não quis me assumir, me apresntar para a família e para os amigos. O racismo me atravessa ainda que muita gente não queira me ver como a mulher negra que sou. Existo dilacerada por essa violência que me consome viva todos os dias.

Raised by wolves, stronger than fear**. O Bono sempre grita alguma palavra de ordem na minha cabeça — quer ele queira, quer não. Tento ser maior do que o racismo e continuo lutando. Stronger than fear. Luto por este coração que pulsa insistentemente dentro da minha caixa torácica, ainda que eu ache curioso como os sentidos de guerra e de perda façam simbiose nas quatro letras da palavra "luto". Se verbo, tão repleto de vida; se substantivo, tão cheio de morte; em ambos, tão cheios de dor. A minha cartomante preferida diria que "luto é amor que não tem para onde ir". Talvez por isso mesmo eu escreva, para direcionar o meu amor para o desconhecido que me lê. Sempre amei demais e é isso, o advérbio de intensidade, que tira e, ao mesmo tempo, nutre a minha força.


💚💚💚


*Encontrei este texto nos meus rascunhos da época da pandemia e resolvi compartilhá-lo com vocês.
**Vocês podem ver o U2 cantando Raised by Wolves, clicando aqui (para ler a letra da canção no vídeo, use a função CC/legendas, do YouTube). A música faz parte do álbum Songs of Innocence, lançado em 2014.

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