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domingo, 7 de setembro de 2025

Defenestração

domingo, setembro 07, 2025 1


Fenestra é janela em latim. De- é um prefixo, também latino, que significa movimento de cima para baixo. Logo, podemos descrever a ação de atirar algo pela janela como defenestrar, e o ato, em si, como defenestração.

Embora seja professora de língua portuguesa, não estou aqui para dar aula sobre a origem das palavras. Tampouco, para dizer que aprendi a etimologia de defenestração nas aulas de latim ou lendo algum dos (maravilhosos!) livros do Caetano W. Galindo. Escrevo hoje na tentativa de defenestrar no papel algumas palavras carinhosas a pessoa que me ensinou o significado do vocábulo de uma maneira muito mais engraçada do que o primeiro parágrafo metódico do meu texto. Tal pessoa é Luis Fernando Veríssimo.

Quando criança, meu pai trabalhava na editora Abril. Ele sempre trazia um exemplar da Veja e da Veja SP para casa. Eu, por minha vez, sempre folheava as revistas nada atrativas para uma criança e lia aquilo que conseguia compreender: a última página, a página das crônicas. 

Claro que, naquela época, eu não entendia que crônica era um gênero discursivo que, como explicou o Antônio Cândido no famoso texto publicado na coleção Para Gostar de Ler, fala sobre temas ao rés do chão. Lia porque a simplicidade me divertia. 

Anos mais tarde, já frequentando a biblioteca, descobri aquele autor meio careca, meio gordinho, que tinha muitos — mas muitos MESMO — livros publicados em que narrava cenas do cotidiano. As tais das crônicas. Comecei com as Comédias para se ler na escola e não parei mais. Veríssimo, pra mim, tornou-se sinônimo de verdade, uma verdade íntima que me revelou uma epifania solar: também queria escrever acerca dos causos e mais causos que tanto observara. 

No meio de todos aqueles textos, lá estava a tal da Defenestração

Se hoje defenestro, do alto da minha caixola, palavras no papel, é porque antes de mim houve um Luis Fernando (veja só, Fernando, assim como eu!), que do alto de sua timidez não deixava de observar (!!!) tudo ao redor e que fazia questão de amar a língua como instrumento não só de trabalho, mas de vida. Por isso, a notícia de sua passagem, me deu um nó no peito. Perdemos um dos grandes!

O nó veio por saber que ele é eterno; mas, agora, etéreo. Sublimou-se em sua presença física, não vai mais defenestrar palavras sobre nós, ainda que seu legado se sustente firme, forte, sorridente, crítico e bem-humorado. 

Certa vez ouvi o Mick Jagger dizendo que só se sente velho quando ele vê alguém que ama partindo. A idade pesou por aqui, no dia em que o Veríssimo se foi.

Mas, para não terminar esta crônica de maneira tão solene e triste (acho mesmo que o Veríssimo detestaria isso), deixo abaixo a Defenestração, do próprio autor — muito melhor do que as minhas palavras, que de sinceras soam piegas. Divirtam-se:

Luis Fernando Veríssimo
(Imagem: Unesp/divulgação)


Defenestração

Luis Fernando Veríssimo

Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A falácia Amazônica. A misteriosa falácia Negra. 

Hermeneutas deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria. 

Os hermeneutas estão chegando! 
— Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada... 

Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisa recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. 

— Alô... 
 O que é que você quer dizer com isso? 

Traquinagem devia ser uma peça mecânica. 

— Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto. 

Plúmbeo devia ser o barulho que o corpo faz ao cair na água.

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres: 

— Defenestras? 

A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam. 

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria assim defenestradores profissionais. 

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo tê-la usado uma ou outra vez, como em: 

— Aquele é um defenestrado. 

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata. Um dia finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino, ato de atirar alguém ou algo pela janela. 

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal,não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração? 

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo. 

— Les defenestrations. Devem ser proibidas. 
— Sim, monsieur le ministre. 
— São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios. 
— Sim, monsieur le ministre.
— Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos. 

Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes. 

— É essa estranha vontade de atirar alguém pela janela, doutor...
— Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar — diz o analista, afastando-se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suite matrimonial, no 17º andar.

— Querida...
— Mmmm?
— Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
— Fala amor.
— Sou um defenestrador.

E a noiva, em sua inocência, caminha para cama:

— Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:

— Fui defenestrado...

Alguém comenta:

— Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar essa crônica. Se ela sair é porque resisti.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Defenestração. In: O nariz e outras crônicas. 6.ed. São Paulo: Ática, 1998. p. 82-84.


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domingo, 27 de julho de 2025

SP, 14 de maio de 2021 (sexta-feira, 02h32)*

domingo, julho 27, 2025 4



A navalha da espada corta tudo o que é onírico e me acende a luz da consciência já perdida. Não é o avassalador que me move a escrever, é o anseio pela tranquilidade que repousa no silêncio compartilhado e nas mãos dadas. 

Eu cresci achando que queria um amor de cinema, que seria um clichê ambulante, desses em que um tromba no outro e a paixão acontece instantaneamente. Eu vivi um amor que acabou como nas tragédias: ele sem memória, sem saber quem sou, sem saber quem éramos. Sufoquei a minha perda, o meu luto e, sobretudo, o meu afeto. Precisava seguir. Demorou muito, mas aqui estou. Aqui caminho. Viva. Viva com ar que enche os meus pulmões e força oxigênio correr pela minha veia.

Anos depois vieram outras pessoas. O que tinha a mesma profissão que a minha; o match do Tinder que atrasou mais de duas horas e o encontro não deu em nada; o cara que flertou de todos os jeitos e surgiu com uma namorada depois que me percebeu apaixonada por ele. Todos hollywodianamente avassaladores. Todos me forçando a nadar e morrer na praia. Logo eu, que não sei nenhum dos quatro tipos de nado.

Estou viva. Cansadamente viva. Quando penso na tarefa de escrever sobre essas feridas me sinto inteira. Hoje elas têm casca, algumas já são cicatriz. Machucados que se fortaleceram porque joguei palavras e mais palavras sobre elas. Oxigênio forçado em cada célula.

Tento me apaixonar gradativamente pela pessoa que vejo todos os dias no espelho. O tempo é implacável e já começa a mostrar os seus sinais. Os cabelos estão diferentes, a pele contém marcas, as rugas iniciam a dominação de território ao redor dos olhos. Há uma dissonância entre a minha mente e o meu corpo. O relacionamento deles já entrou em crise há tempos: a cabeça é jovem, mas os joelhos falam alto com suas dobradiças enferrujadas. "Começa assim sem dor, quando chegar nos 60 a gente conversa", diz minha companheira de aula de Pilates. As areias do tempo teimam em escorrer rio abaixo…

Há mais de um ano que não saio de casa, que não vejo os meus amigos. Tento me lembrar quando foi a última vez que beijei uma boca. Não consigo. A minha relação com o tempo anda mais confusa que a minha vida amorosa. "Todo dia é uma segunda-feira", disse a minha professora de escrita, mas acho que já ouvi outras pessoas falando algo parecido.

Presenciar fatos históricos é algo que sempre me fez me apegar à vida: a morte do Senna, os aviões que caíram perto de casa, a queda das Torres gêmeas, a luta do Mandela. Sempre fui uma espectadora atenta ao meu tempo. Nunca pensei, contudo, que teria que ser participante ativa de um evento que mudaria a vida planetária do avesso, como tem sido esta pandemia. Enfurnada em casa sigo (ontem completei 1 ano e 2 meses em que saí apenas 16 vezes de casa para cumprir tarefas que precisavam de mim impreterivelmente). Continuo sendo categórica na missão de proteger a mim e à minha família. Sigo estrita, restrita, e exaurida.

Minha memória anda tão exausta quanto o meu corpo. Talvez seja por isso mesmo que eu queira muito um relacionamento, mas não mais um amor avassalador. Eu não quero roteiros perfeitos, quero aconchego.

***

Antes de ler sobre a experiência de pessoas negras, eu achava que eu era estranha. Por que eu sempre era a única sozinha? Depois do contato, compreendi tudo. Os pontos se ligaram de um modo que foi só parar para analisar, que fez total sentido. Não à toa todos os caras por quem já tive atração estão se relacionando todos com mulheres brancas, não à toa, o principal deles não quis me assumir, me apresntar para a família e para os amigos. O racismo me atravessa ainda que muita gente não queira me ver como a mulher negra que sou. Existo dilacerada por essa violência que me consome viva todos os dias.

Raised by wolves, stronger than fear**. O Bono sempre grita alguma palavra de ordem na minha cabeça — quer ele queira, quer não. Tento ser maior do que o racismo e continuo lutando. Stronger than fear. Luto por este coração que pulsa insistentemente dentro da minha caixa torácica, ainda que eu ache curioso como os sentidos de guerra e de perda façam simbiose nas quatro letras da palavra "luto". Se verbo, tão repleto de vida; se substantivo, tão cheio de morte; em ambos, tão cheios de dor. A minha cartomante preferida diria que "luto é amor que não tem para onde ir". Talvez por isso mesmo eu escreva, para direcionar o meu amor para o desconhecido que me lê. Sempre amei demais e é isso, o advérbio de intensidade, que tira e, ao mesmo tempo, nutre a minha força.


💚💚💚


*Encontrei este texto nos meus rascunhos da época da pandemia e resolvi compartilhá-lo com vocês.
**Vocês podem ver o U2 cantando Raised by Wolves, clicando aqui (para ler a letra da canção no vídeo, use a função CC/legendas, do YouTube). A música faz parte do álbum Songs of Innocence, lançado em 2014.

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domingo, 20 de julho de 2025

Objeto ônibus em 6 atos

domingo, julho 20, 2025 3
Foto de Ant Rozetsky, via Unsplash.



Dia 01. Terça-feira de manhã fria de outono. 
Chego ao ponto e uma mulher branca de cabelos grisalhos carrega um gatinho na caixa de transportes. Conversamos. O gato vai no mesmo ônibus que eu, fazer um tratamento semanal de saúde. O gato observa pelas frestas da caixa sem miar. Sua dona é faladeira e, como toda gateira, conta não só desse, mas dos outros 5 gatos que ficaram em casa. Falo sobre as minhas duas e de como elas estariam se matando de miar caso estivessem assim: dentro da caixa, em um ponto de ônibus, prestes ao chacoalhar e ao entra e sai de desconhecidos. Sorrimos como duas cúmplices. Gatos e suas personalidades. 

Dia 02. Tarde com sol que esquenta e vento gélido que, por razões óbvias, esfria. 
O ponto está cheio. Entro na lotação, e há um jovem casal de negros falando uma língua que desconheço. Tento entender, mas as palavras me escapam. Sei que é afetuoso, porque eles riem o tempo todo um para o outro. Curiosamente ou não, chego ao meu destino e escuto minha professora dizendo que “o sorriso é linguagem de resistência”. Sorrio eu também ao me lembrar disso. Queria saber que língua era aquela. Juntos, seguimos — mesmo que séculos depois — resistindo. 

Dia 03. Outra manhã de outono. Desta vez, ainda mais gelada.
Ao virar a esquina, encontro minha vizinha. Ela vai comigo até o ponto e resolve pegar o mesmo ônibus que eu só para continuar o cadinho de prosa. Há tempos não nos víamos. Ela me conta da neta de 4 anos e da mãe de quase 90. Ambas, cada uma a seu modo, vivendo de uma inocência sem fim - seja a inocência de quem ainda não sabe nada do mundo; seja a de quem sabe demais dele. Viver é igual e diferente para todos nós: finitude concomitante. Isso é bonito demais. 

Dia 04. Tarde fresca de veranico fora de época. 
Outro micro-ônibus. Na metade do caminho entra um homem. Ele puxa assunto com o rapazote ao seu lado. Todos viajam em silêncio. O rapaz meneia a cabeça como se quisesse encerrar o assunto. O homem diz que na terra dele tudo se resolve na faca, que tinha batido na mulher, que “ela foi embora com um cabra 10 anos mais novo”. O rapaz desviava o olhar. “Fiz questão de ir lá dizer pro cabra que ele tá pegando o resto, eu usei tudo o que tinha para usar”. Dei sorte de poder descer antes que meu estômago se revirasse ainda mais. 

Dia 05. Manhã gelada, quase inverno. 
Subi a ladeira correndo para não perder o ônibus. Cheguei no ponto esbaforida. Corrida à toa. Ele ainda demorou um pouco para sair. Consegui me sentar em um lugar sozinha. Entrou um homem todo tatuado: mãos, braços, pescoço e cabeça. Olhei-o de frente. Talvez ele tenha achado que eu senti medo ou alguma forma de preconceito. A verdade é que eu — com toda a minha fobia de agulha — sempre me pergunto o quanto será que dói tatuar pescoço, nuca e crânio. Sempre penso que as pessoas que aguentam esse tipo de dor são mais fortes do que pensam. Estava perdida nesse pensamento, quando o homem puxou assunto com o cobrador: “esse ônibus volta com qual nome? É que eu sou novo por aqui. Tô ajudando a família da minha amiga, eles estão com esse problema lá na Enel e já ligaram um monte de vezes. Ela trabalha e fora do trabalho fica com a filha pequena, então vou lá tentar resolver por ela”. Como a maioria dos tatuados que eu conheço, o cara é gente boa. O cobrador respondeu dizendo não só que avisaria qual era o ponto mais próximo, mas também lhe deu opções de outras linhas pra volta. Gentilezas. 

Dia 06. Tarde congelante. Véspera de inverno. 
Uma nova lotação. O casal de negros novamente, dessa vez acompanhados pela mãe de um deles. De novo aquela língua bonita e desconhecida. Sentei-me atrás do trio. Queria puxar assunto, mas não sabia se eles falam português ou não. Também não quis interromper a beleza da sonoridade indecifrável e dos sorrisos intercambiáveis a cada fala. Do outro lado do corredor, duas senhoras. Não sei se elas se conheciam. Uma delas, a sentada próxima à janela, sem medo ou vergonha, vasculhava o próprio nariz com o dedo. Limpava o salão sem pudor nenhum. Sem medo do modo que gente, vírus e bactérias poderiam agir diante da situação. Apenas limpando. Apenas sendo feliz. Feliz com a pequena catota retirada a cada avanço do ônibus em direção a um destino que não sei qual é, afinal, desci antes dela.

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domingo, 8 de junho de 2025

Seis anos de publicação: reflexões de uma jornada de escrita e de leitura

domingo, junho 08, 2025 11
Há 6 anos, eu publicava o meu primeiro livro.

Hoje, 8 de junho, faz seis anos que publiquei o meu primeiro livro, A Intermitência das Coisas: sobre o que há entre o vazio e o caos (Editora Litteralux). Ao mesmo tempo que foi ontem, parece que vivi uma vida inteira desde aquele dia.


Me considero escritora desde que abri o meu primeiro blog, Escritos Humanos, lá pelos idos de 2004. Minha carreira foi ganhando consistência, no entanto, quando eu comecei a trabalhar aqui no Algumas Observações, em 2006. Entretanto, há um mito no imaginário coletivo de que pessoas só se tornam escritoras quando tem o objeto livro publicado em formato físico. Há uma necessidade intrínseca de pegar o livro nas mãos e fazer aquilo chamamos de Leitura Sensorial. Talvez por isso mesmo que comemorar o aniversário do A Intermitência sempre me traga para um espaço de reflexão: porque foi a partir dele que muitas pessoas ao meu redor passaram a me considerar “escritora de verdade”, ainda que eu nunca tenha sido “escritora de mentira”.


Meu livro em Paraty, durante a Flip.


É claro que eu ainda não preencho todos os requisitos para muitos leitores por aí. O motivo? Meus livros literários solos são todos de poesia. Se, para mim, escritor é quem escreve, para muita gente ser poeta não é ser escritor (assim como ser cronista ou contista também não). Vejo a empolgação e a frustração toda vez que o seguinte diálogo se repete:

 

— O que você faz?

— Sou professora e escritora. Tenho dois livros literários e um didático publicados. O meu primeiro foi traduzido para o espanhol.

— Sério? E sobre o que fala as histórias dos seus livros?

— Na verdade, meus livros são de poesia.

— Ah…

 

✨ Veja como foi o lançamento do A Intermitência das Coisas, clicando aqui.💙


O ar reticente vem muitas vezes com “poesia é tão difícil, né?”. Com jeitinho, tento responder que “não, poesia não é difícil”. Eu — e aqui falo também como professora de língua e de literatura — não acho que ler ou escrever poesia seja difícil. Acho apenas que nós — sejamos leitores ou escritores — temos que entrar por essa porta com uma chave diferente.

Os múltiplos abraços no dia do lançamento. 

Pensando na analogia da chave: você não abre um cadeado com a chave do carro, do mesmo modo que você não tranca um portão com a chave de uma gaveta ou de um armário. Com a leitura e com a escrita acontece algo similar: não adianta eu ler um poema esperando dele o que viria no romance ou num artigo científico. São chaves diferentes. A gente precisa entrar no livro com a chave certa.


Certa vez, me peguei pensando qual é o propósito da minha escrita e cheguei à conclusão de que tudo o que faço, seja como blogueira, como autora de livros, seja como professora é tentar ser ponte para que as pessoas percam o medo dos livros, da palavra escrita, da poesia.  E por que isso? Porque a poesia está da vida, mas o sistema estabelecido socialmente vai matando o nosso olhar artístico para as belezas ao nosso redor. A gente se acostuma com o piloto automático. E como já diria Marina Colasanti, “Eu sei que a gente, mas não devia”.


✨ A intermitência das coisas nas bibliotecas públicas de São Paulo. 💙


Há 6 anos eu venho, profissionalmente falando, dizendo que se textos de não ficção são para serem lidos com o racional; a prosa, num mix de razão e de emoção; a poesia — assim como a sua irmã: a canção — é para ser lida com o emocional. Quando a gente abre o coração, a gente sente a poesia. Poesia é feita para ser, sobretudo, sentida. Via de regra, quem quer analisar intelectualmente um poema é alguém que exerce a função de crítico literário.

Meus livros juntos. :)

Estou dizendo que só críticos podem analisar intelectualmente? Não. Mas pense comigo: tente se lembrar de um poema ou de uma canção que você já leu/ouviu e de que gostou muito. Muitas vezes, esses os versos entraram nas suas entranhas. Você gosta porque gosta, porque o poema ou a canção moveu um sentimento tão profundo, intrínseco, inconsciente, que fica difícil racionalizar por que raios você gosta tanto daquele texto. É sobre isso que estou falando. Quando a gente lê um poema com essa chave, a poesia se torna muito menos assustadora. E é por isso que eu continuo a escrever poesia: porque essa forma de escrita me acessa nos meus lugares mais recônditos e porque eu sei que se meu leitor perder o medo, ele também vai encontrar os lugares mais recônditos dentro de si.


Seis anos se passaram e o A Intermitência segue firme me ajudando nessa missão. Além de alcançar leitores em língua portuguesa, ano passado ele foi traduzido e agora pode ser lido en español, além de ser vendido no Brasil e na Argentina. Eu só posso agradecer por saber que há leitores nacionais e estrangeiros que se permitem navegar pelos meus versos — com medo dos versos ou não. São justamente esses leitores que continuam a me dar forças para ser um pequeno ponto de luz poética insistente contra essa vida corrida e líquida que tenta nos engolir o tempo todo. A todos que me leem, muito obrigada! 


✨Quer apoiar meu trabalho como escritora? Meus livros estão à venda e você pode conferir todos os títulos aqui! Obrigada por ler, seguir, e caminhar junto nessa jornada de palavras. 💙💜

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domingo, 13 de abril de 2025

Entre rachaduras e frestas

domingo, abril 13, 2025 6

Gosto de registrar trivialidades do meu dia – destas que ninguém se importa. Documentalizar uma vida simples, sem importância, lenta. Uma vida vagarosa em meio ao vazio e ao caso. Sou lenta. Sempre fui. Mas também sou um paradoxo. Sempre fui também. Uma mente ansiosa – e, por vezes, catastrófica – para domar. Cada um tem o seu próprio desafio interno – e se acha que não o tem, é porque ainda não o descobriu.

Ano passado, em setembro, minha tia me deu um cacto de presente de aniversário. Muda nascida do cacto que ela mesma cuida há anos. Ela me deu. Eu agradeci, feliz com a singeleza, e procurei um lugar de honra no meio das minhas suculentas. O cacto? Bem, ele detestou. Um mês depois, a mesma tia estava em casa vendo a minha cara de “eu não sei mais o que fazer”, ao mostrar para ela as pontas amareladas e molengas da planta.

– Ele é bruto. Põe no sol. Ele vai ficar bem.

Gosto de cactos porque eles – de algum modo – me lembram dos poetas: ambos estão num mundo hostil, com pouquíssimos recursos, contudo dão um jeito não só de sobreviver, mas também de fazer isso com leveza. Poetas e cactos mudam a paisagem árida e trazem a boniteza para ela.

Meu cacto foi parar do lado de fora da janela da cozinha. Está ali: sujeito a todo tipo de intempéries (sol, chuva, vento, garoa, neblina…) e num lugar nada glamuroso, sem destaque algum. Vulnerável, entregue. A parte mole e amarelada, entretanto, aos poucos foi recuperando o verde, ganhando a firmeza perdida. Novos caules foram nascendo, crescendo. Chegou ao ponto de eu pensar em comprar um vaso novo. Preciso perguntar à tia como replantá-lo.

Há três semanas tive uma surpresa. Fui conversar com ele – sou da espécie que conversa com fauna e flora – e me deparei com um tímido botão.

– Mãããããe, acho que o cacto vai dar flor, vem ver! – Meus olhos brilhavam, claro.

Foi aí, então, que a minha mente lenta que gosta de ser ansiosa resolveu sair da maratona e correr um sprint: “Será que o botão vai crescer?”, “Será que vai abrir outro botão?”, “Será que a flor demora para abrir?”, “Que cor será a flor?” – emoções todas de alguém cujos outros cactos e suculentas nunca floresceram, tal qual mãe de primeira viagem.

A onda de calor veio e, por incrível que pareça, meu cacto amou! Apesar de tomar todo o sol da tarde, o botão estava a cada dia maior e maior e maior. Maior a ponto de minha mãe vir me dizer um “manda foto para sua tia e pergunta se isso é normal”. Mandei a foto só pra dizer que vinha uma flor por aí. Ela, claro, ficou feliz também.

Ontem de manhã fui lavar a louça do café da manhã e espiei o outro lado da janela. Algo havia mudado. O botão estava abrindo. Corri para destrancar a porta e atravessar a parede. Precisava observar mais de perto. Era verdade!!! Estava abrindo uma flor peluda e rajadinha – quase como a descrição de um gato. Tirei foto orgulhosa – não sem antes dizer ao cacto que sua flor é linda! – e mandei a imagem para a minha tia, que está em viagem, e para as minhas melhores amigas – que acompanham de perto as minhas trivialidades. Na conversa com elas surgiu a dúvida: que cacto é esse, afinal?

Usei o Google Lens para a pesquisa. Coloquei a foto que havia tirado. O primeiro link, em inglês, dizia que a espécie é sul-africana, que há variações nas cores da flor (podem ser roxas, brancas, amarelas e rosa) e que – apesar de parecer carnívora – por causa dos pelinhos na flor –, a planta não é. Aliás, ela é adequada para quem tem pets. Vir de um lugar quente explica ela ser o único ser vivo nesta casa a amar a onda de calor.

Duas horas mais tarde, fui pegar um balde no quintal, e ela já tinha aberto de vez. Florida em sua potência. Fiquei emocionada. Tirei uma nova foto. Mandei para a tia, para as amigas e postei nos stories do Instagram.

Gosto de registrar trivialidades que ninguém se importa. Elas me comovem e me lembram que – apesar de estar num mundo tão bélico – a poesia nasce das rachaduras e de frestas.

(Ainda bem.)

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domingo, 9 de fevereiro de 2025

Maresia

domingo, fevereiro 09, 2025 6


“Estou sendo atropelada por uma onda de amor”, me ouvi dizendo a uma amiga mais próxima. Há tempos — anos, sem exagero algum —, não me sentia assim. Bytes que vêm e vão também é troca? Faço pontes entre o meu cantinho e lugares remotos. Assim celebro as pequenas conquistas diárias. O tempo passa de modo distinto, e eu fico pensando quantos anos cabem nesse intervalo que chamo de temporada 2020-2021. Muitas pessoas vieram — algumas delas parecem estar aqui desde sempre — e outras se foram. Aprender a me respeitar é mais que preciso, é questão de sobrevivência.

Leio poesia como quem respira. Cada verso agita as moléculas do meu corpo, reverberando vida. “Deu para ver na sua pele o quanto você parecia feliz por estar ali”, foi o que a minha amiga respondeu. Cada vez mais eu penso sobre o ser inteira. Em um mundo que acelera tudo em nome da produtividade, quero estar lenta, entregue e completa nas minhas relações com os outros.

Escrevo. Solto pensamentos nas páginas do meu diário sem pensar muito o que vou fazer com eles. É preciso fazer algo?! Escrevo, faço polaroides, brinco com as gatas, observo o céu. Será que voltarei a compartilhar silêncios amorosos com quem me quer bem?

A roda da fortuna está girando. Tenho sorte de receber avisos amorosos de oráculos, anjos e pessoas que me querem bem — Deus tem ótimos mensageiros. Tenho sorte por receber amor de onde menos espero. É claro que há decepções pelo caminho, que há dores pelo caminho, que há genocidas pelo caminho. Nada é cem por cento flor, mas continuo plantando e lutando. Uma hora a semente germina.

Há tempos não punha os pés fora de casa. Não sabia que agora dá para pagar o metrô com aplicativo do celular ou que finalmente arrumaram o poste e a minha rua está melhor iluminada à noite. Há tempos não saía, mas fui brindada com uma chuva de folhas das árvores sobre a minha cabeça — elas me deram o melhor de si. O amor vem de todos os lados ou sou eu que sempre me transbordo demais?

Os últimos trinta dias foram tão intensos quanto um passeio pela maior montanha-russa do mundo. Isso, de algum modo, me deixa de ressaca — uma ressaca boa, de quem tem histórias para contar. Vou com as ondas, sacolejando de um lado a outro, tentando tirar o melhor de cada experiência. A natureza também sou eu.

Converso sobre a previsão do tempo com quem sente mais frio que eu. Passo café no meio da tarde. Mergulho em sonhos com Netuno. Tenho conversas profundas sobre sentimentos piegas. Reflito sobre o que quero deixar de legado. Coleto os pequenos acontecimentos e os coloco na prateleira da vida. O tempo, por sua vez, brinca de se arrastar e correr num piscar, enquanto eu ouço os lendários entoando clássicos do rock no player do meu computador. Me rendo a uma atmosfera de esperança que me circunda, me empurrando em direção ao futuro — seja ele qual for.

Talvez eu esteja quebrando a promessa de enviar uma crônica por mês. Não sei se o que escrevo pode ser considerado crônica (no sentido Rubem Braga de ser), mas sigo. Sigo, porque tenho sede de me interligar com quem me lê. Sigo, porque quero me conectar ao mundo como fazem os bytes do meu computador. Sei que minha sede profunda nunca acabará. Ela me faz ser e estar aqui. Completa. Inteira. Sempre.

E você? Você também está me lendo por inteiro?

Olho para as minhas inconsciências. Elas são mapas para eu não me perder.

Este texto foi enviado na minha newsletter em 30 de maio de 2021. Para receber outras crônicas como esta em seu e-mail, inscreva-se
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domingo, 29 de dezembro de 2024

O limbo e uma dose de esperança

domingo, dezembro 29, 2024 4
Foto de Ch Photography na Unsplash.


Escrevo este texto em 25 de dezembro, também conhecido como Natal. Desde pequena, me pergunto se a gente comemora o aniversário de Jesus — e, por consequência, todos os outros — do modo correto. Minha cabeça de virginiana que é analítica, mas que não sabe lidar com a exatidão matemática, se questiona se o certo não seria usar o fuso horário de Belém e fazer as contas. Afinal, 25 de dezembro em Belém pode ser 26 na Austrália e 24 no Chile, não pode? (Não sei, nunca fiz as contas.)

Estava vendo um reel que mostrava uma moça islandesa. Na Islândia, a comemoração começa às 6 da tarde do dia 24 de dezembro, mas os presentes começam a chegar 13 dias antes, trazidos por 13 papais Noel (ou Noéis?) diferentes. Segundo ela, alguns deles são assustadores. Todos são irmãos e filhos de uma bruxa. Assim como acontece com o Papai Noel universal, eles só presenteiam as crianças comportadas (as que não se comportam são devoradas pela bruxa).

Minha mãe conta que ela deixava o sapatinho na janela durante a época de Natal e que uma tia — irmã do meu avô — costumava deixar presentes para ela e para os meus tios em nome do bom velhinho. O medo da minha mãe era receber um pedaço de carvão, como “punição” por não ter sido uma boa menina. Li na Deutsche Welle que essa é uma das tradições italianas, que lá, “a bruxa Befana leva doces para as crianças boas. As que foram ‘malvadas’ recebem um pedaço de ‘carvão’ feito de açúcar.” — não sei como a história do carvão foi chegar na Zona da Mata pernambucana, mas aí está uma tradição que se repete.

Este ano ganhei um único presente de Natal. Biscoitos de gengibre numa caixa bonitona que veio da minha irmã do coração. Ela sabe o quanto amo o Natal, embora as pessoas ao meu redor não gostem muito da data. O presente, me emocionou. Já eu, comprei alguns que quero entregar pessoalmente, conforme for encontrando os queridos por aí.

for encontrando”. Acho que o gerúndio é o motivo de eu ter começado a escrever este texto. Gosto de desacelerar em dezembro e dessa espécie de limbo nostálgico para onde ele me transporta. É uma coisa entre dois mundos. Apesar de estar aqui, olho para trás, numa tentativa de saber se saí ou não do lugar; olho para frente, numa tentativa de viver uma vida ainda mais harmoniosa comigo mesma. É um limbo e uma dose de esperança, ainda que a palavra “limbo” me remeta a um espaço meio de areia movediça.

2024 foi um ano atípico. De um lado, vi muita gente que eu amo perdendo pessoas queridas ou vivendo um luto de anos anteriores, vi muita gente ficando doente — eu mesma, inclusive, passei meu aniversário bem ruim. Além de toda pobreza e fome e guerras no mundo, das tragédias climáticas, como a que assolou o Rio Grande do Sul no início do ano e do racismo, houve todos os problemas da vida pessoal e familiar pelos quais muita gente também passa. A sensação que me dá é que se a gente ficar olhando muito pra tudo o que vê nas notícias e ao redor, que a gente será engolido pelo limbo movediço.

Mas há esperança. Sempre há. Se de um lado houve tantas dores, do outro, ganhei novas alunas, trabalhei no meu terceiro livro, reativei meu canal no YouTube, voltei à newsletter, publiquei meu primeiro livro traduzido para o espanhol, consegui me colocar alguns pontos finais em relacionamentos que eram tóxicos, me curei de muita coisa, me diverti nos inúmeros shows que fui. Ter contato com a arte me alimenta: sempre há o lado meio cheio do copo.

2025 vem aí, “um ano novo que traz consigo 365 páginas de possibilidades”. Alguns clichês não são clichês à toa. Há algo na sabedoria popular que nos dá um alento, um fôlego. Que 2025 seja isso: um sopro de vida para o nosso espírito realizar os nossos desejos mais profundos sem medo, vergonha ou culpa. Que, planejando ou não, nós cheguemos naquele espaço em que nos sentimos verdadeiramente acolhidos. Que tenhamos a coragem de atravessar o que tivermos que atravessar e que todos os caminhos nos levem na direção de casa. 😊


Este texto foi enviado em primeira mão na minha newsletter de presente de Natal. Para receber este e outros textos, inscreva-se aqui.

Boas festas! 
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domingo, 20 de outubro de 2024

Reflexões sobre aprender a perder quem se ama

domingo, outubro 20, 2024 10
Imagem por Kaboompics, via Pexels.


Perder alguém que se ama não é fácil. Há dor, há vazio, há aquela eterna sensação de chão se abrindo debaixo dos próprios pés, ainda que haja chão e que a gente consiga tocar o nosso próprio corpo. Nossa carne vive, respira, se move — mas a do outro, não. Ela não está mais respirando, coçando a cabeça, sentindo fome, medo, frio, amor. Uma linha tênue separa os mundos, um véu translúcido diz quem tem o direito ou não de envelhecer.

*

A música preenche os espaços vazios: o abraço do desquerido que partiu coração; a falta de companhia na academia; a dança sozinha no quarto depois de um dia ruim no trabalho; a canção de ninar para o sono que não vem.

A música cria laços: a viagem de carro cantada a plenos pulmões; a trilha sonora enquanto encara a fila da compra de um ingresso; a fila presencial antes de entrar no show; a canção de ninar cantada para a barriga que gesta; a música da formatura que marca uma vida; a música que você cresceu vendo os seus avós cantarem e dançarem. A primeira valsa. A trilha sonora da adolescência que antes era dos avós e dos pais e agora é sua, porque os Beatles e os Rolling Stones são eternos. A trilha sonora da adolescência que é só sua e dos seus amigos que amam rock, pop e que, no fundo, também são emos. Laços de amor. Construção de identidade. Identificação com um jeito de ser, com uma cultura, com uma língua, com um grupo.

*

Fui estudar línguas porque não queria depender de tradutor. Quando era adolescente, o Google não era tão bom e a gente ou precisava de uma pessoa proficiente, ou carregava a pilha de dicionários bilíngues por aí e perdia um tempão buscando palavra por palavra como quem procura agulha em palheiro. Eu sabia que cedo ou tarde eu veria os meus ídolos. Eu queria conseguir me comunicar sem depender. Eu procurava independência, ainda que houvesse distância entre nós.

Estudar me ajudou não só a compreender o que cantava, mas também me deu amigos — os laços novamente —, me deu uma profissão, me abriu os olhos para o mundo. Tudo porque eu queria saber o que os cinco caras da rua de trás estavam dizendo. Tê-los como ídolos me deu sonhos. Sonhos que pude realizar não só ao conhecê-los, mas de incontáveis outros jeitos.

*

Não sei lidar com doença, não sei lidar com a morte. O luto para mim é muito difícil, desafiador. Sou uma pessoa apegada e isso complica as coisas. Meus maiores medos envolvem perder pessoas que amo. Sejam essas pessoas familiares, amigos, ídolos. Todas elas, em maior ou menor grau, são do meu convívio diário. Mesmo aquelas que todo mundo diz que não sabem que eu existo. Todas elas, estão aqui: pegando na minha mão, me abraçando, dando apoio no momento difícil. Quantas vezes eu percebi que o meu mal humor era porque estava há tempos sem ouvir música, ou assistir a Friends?

A arte existe com fim em si mesma, mas ela salva a mim, a você, a milhares de pessoas. Ignorar a importância do artista, é negar uma parte de si mesmo.

*

Dizem que as únicas certezas que temos na vida dizem respeito ao nascimento e à morte. Eu incluiria uma terceira: envelhecer é sinônimo de perda. Quanto mais velhos ficamos, mais passamos a perder. Primeiro essa perda vem distante: é um amigo que perde um avô ou uma avó, depois somos nós que perdemos os nossos avós. Até que os lutos vão se aproximando. A morte vai dando os seus lembretes: um pet que morre, depois algum amigo de infância, um professor, nossos ídolos, um irmão, nossos pais... Cada um levando um pedaço nosso, igualmente grande, igualmente precioso, igualmente válido, anda que cada luto seja vivido à sua maneira.

*

Digo que não sei lidar com perdas, porque elas são imprevisíveis e não há mesmo uma receita. Por ironia, é justamente essa imprevisibilidade que nos lembra que estamos vivos, respirando, levando esses quilos de carne e ossos por aí, para trabalhar, amar, sentir. O luto é o tipo de coisa que cada um atravessa de um jeito. Cada um escolhe — conscientemente ou não — o que fazer com esse amor que não tem mais para onde ir.

Não há nada mais insensível do que querer ditar como o outro deve lidar com esse amor represado.

*

Assim como não sei lidar com o luto, não sei bem como terminar essa crônica. O que posso dizer é que se você está passando por isso, não importa quem você tenha perdido, você tem todo o meu amor.


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domingo, 13 de outubro de 2024

{Vou por aí} Niall Horan e The Show Tour

domingo, outubro 13, 2024 2
Bora saber como foi o show do irlandês mais fofo da Irlanda. 💚🍀



Era uma manhã comum.

Nunca fui de ouvir a One Direction, não porque não achasse a banda talentosa, mas sim porque ela se lançou numa época muito tumultuada da minha vida. A verdade é que eu parei mesmo para ouvir seus membros durante a pandemia — e fui parar e escutar os trabalhos solos dos meninos, especialmente Harry, Niall e Louis.

Naquela manhã comum, soube que Niall viria ao Brasil. Entrei no site e comprei o ingresso da pista comum, o mais barato, mais longe — deixei os lugares mais perto para as fãs de longa data. Aquele seria o meu primeiro show no Parque Ibirapuera: um momento inusitado em um lugar frequentado desde a infância.

*

Fez calor a semana toda, então não esperava muito a mudança repentina do tempo. Dos 30ºC da véspera, me vi no parque com um casaquinho de lã, encarando cerca de 15ºC. Estava nublado, ventava. Mas isso não era motivo de desânimo — pelo contrário, o clima mais fresco era bom para cantar e dançar sem passar mal com o calor da multidão.

Cheguei no horário da abertura dos portões. Ambas as filas — da pista premium e a minha, da pista comum — estavam longas. Fui sozinha. Eu me sentia a fã mais velha e isso parecia um pouco estranho. Os outros, mais velhos que eu, estavam acompanhando filhos. Eu fui porque acho as músicas do Niall muito bonitas.

As mais novas tinham laços coloridos no cabelo. Camelôs vendiam — não tanto às escondidas — cangas, bandeiras, os tais laços coloridos, botons e polaroids, enquanto tentavam se desviar de fiscais da prefeitura.

*

Quando a fila andou, a entrada foi tranquila. Logo vi as barracas de comida e bebida, bem como a estação de hidratação. Comprei um hamburguer, uma cerveja e uma água. Pedi licença a uma fã simpática e me sentei na outra ponta da mesa de piquenique. Comi feliz. Era uma comida cara, porém gostosa. Depois, fui buscar um local com uma visão boa. Fiquei longe da muvuca, embaixo de uma árvore frondosa, sobre uma raiz, que me deixava um pouquinho mais alta que as pessoas à minha frente. Ao meu lado, um casal de namorados. Acho que ele havia dado o ingresso de presente para ela. Antes do show de abertura, ele lhe perguntou: “Mor, você está feliz?”, ao que ela respondeu com um sorriso e um selinho.

Esqueci a minha canga, então a capa de chuva me serviu de tapete no chão de terra batida. Conforme foi escurecendo, a lua surgiu no céu e as nuvens se dissiparam.

Ao contrário dos outros shows que fui, as fãs do Niall não deram muita abertura aos sorrisinhos dados para o redor, sendo assim, me dividi entre conversar com as amigas no WhatsApp — enquanto ainda havia sinal de celular — e que ler um pouco no app do Kindle, até o início do show de abertura.

*
Clarissa se apresentando. Clique aqui para ver a setlist.


Não conhecia a cantora. Ela, muito jovem, me lembrou o início de carreira da Mallu Magalhães. Clarissa (@clapivara) cantou suas músicas, e foi ótimo conhecê-la e ver seu talento ao vivo. Cantou no gogó, estava muito feliz. Gosto de ver cantores felizes no palco. Ela disse que cresceu ouvindo One Direction e que se sentia honrada de abrir para o Niall. Dava para notar sinceridade e brilho nos olhos. Foi bonito de presenciar.

“Mor, você está feliz?”

“Muito” — o casal agora estava abraçadinho.

*

Niall entrou pontualmente no palco. A primeira pessoa que avistei foi a violinista. Há duas mulheres na banda. O violino trouxe aquele toque irlandês para os palcos que é gostoso de ouvir. Não pude deixar de me lembrar do Bono falando da conexão Irlanda-Brasil nessa hora. De algum modo, a vi ali, de novo, materializado na energia do Niall. Ele estava visivelmente feliz por estar de volta. As fãs estavam lhe abraçando com gritos entusiasmados e olhares carinhosos. Tudo estava se encaminhando pra uma noite perfeita.

E foi.

Achei muito bonito como as fãs fizeram uma gradação: quase um sussurro no set acústico e cantando a plenos pulmões todas as outras músicas.

“Niall, EU-TE-A-MO! Niall, EU-TE-AMO!” — ele tira o ponto do ouvido — “Niall, EU-TE-A-MO” — ele sorri de mostrar todos os dentes e responde, para a minha surpresa, em português — “Obrigado”.


*

“Mor, você está feliz?”

“Eu não sei como poderia ser mais feliz.” — ele seguia orgulhoso, ela notadamente tinha um sonho realizado.

*

Eu estava feliz também. Valeu a pena ter ido, mesmo que sozinha. O talento do Niall é bonito demais de se presenciar. O amor das fãs é daqueles que revigoriza. Foi uma noite feliz — mesmo tendo que esperar o ônibus por quase uma hora na volta pra casa. Cantei, dancei, chorei, ri e soltei vários "que fofo! Quero levar pra minha casa!". Assim com a Clarissa, a banda, as fãs de desde sempre e o próprio Niall, eu saí do show com um sorriso gigante, com o coração quentinho e com o desejo de mais um.


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domingo, 4 de agosto de 2024

Reflexões sobre a simplicidade

domingo, agosto 04, 2024 6
Meu minibuquê de sempre-vivas. 


Às vezes, o que precisamos é de simplificar. Fazer o que tem que ser feito, não ficar pensando muito. Sabe aquela conversa difícil, aquela tarefa chata do trabalho, aquela pinha de roupa no canto do quarto? Não pensar muito. Ir lá e fazer. Falar. Entregar.

Quando o blog completou 18 anos, muitas pessoas me parabenizaram pela consistência. "Como manter um site por tanto tempo?" é a pergunta que ainda hoje mais ouço. Pois bem, a fórmula mágica é essa: aparecer. Vir aqui, clicar em "novo post", escrever e colocar os pensamentos no ar.

O problema, para mim ao menos, é que em alguns momentos eu me esqueço de levar esta máxima para a vida. As coisas mais óbvias, mais simples, são aquelas que precisam ser lembradas constantemente. Em uma época em que é fácil ser engolida por mil uma tarefas, mil e uma informações, mil e um medos, é fácil ser devorada por qualquer coisa que não seja realmente importante. 

Tenho pensado muito sobre isso. Sobre o que é simples e essencial. Sobre o que me traz pro eixo e me acalma. Sobre o que me tira dessa máquina de moer carne que é este tempo em que tudo tem que ser novo e pra ontem. O que traz calma e paz?

Não consigo encontrar uma resposta certa, mas tenho algumas pistas. Bloquinhos de coisas que posso montar e desmontar de modos diferentes, a depender das circunstâncias: conversar com quem amo, bolo, banho quente, chá, vídeos de stand up no YouTube, colocar no papel novos planos, um docinho depois do almoço, uma caminhadinha ao sol, visitar museus, escrever em cafeterias, gargalhar espontaneamente, ir a shows, limpar a casa, brincar com as gatas, postar no blog, estudar, visitar um parque, fotografar o que me chama a atenção, minha flor preferida, a ternura do amor...

Às vezes, o que precisamos é simplificar.

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sábado, 18 de maio de 2024

Maré cheia

sábado, maio 18, 2024 6

Foto de Jakob Owens, via Unsplash.
  

Sou covarde até para a morte.


O lugar em que aprendi a jogar xadrez, em que retornei para celebrar o meu aniversário de trinta anos, não existe mais. Soube quando quis voltar lá e, simplesmente, fui impedida: portas e janelas fechadas. Nenhum José para, sequer, perguntar “e agora?”. O que fazer quando os lugares das memórias afetivas se vão? O aniversário de 30 foi um dos mais divertidos, isso porque  foi simples. Também foi o ano em que ganhei balões. Aos 30 anos, foi a primeira vez que ganhei balões. Quase uma década depois ainda me emociono com a singeleza do gesto: uma tentativa simbólica do desejo de uma amiga-irmã de me ver a voar alto, de me ver indo longe. Já daquela partida, me lembro muito pouco. A lógica do jogo (de tabuleiro e do amoroso) nunca fez sentido na minha cabeça. Demorei para vencer (ganhei na quinta ou sexta partida), perdi no amor. Rebaixei na vida.


O importante é se manter em movimento. Subo a rua até a avenida, procuro outro lugar tranquilo para tomar um café e escrever. Peço um croissant e um café no maior tamanho possível. Os planos eram sentar, rever o eterno projeto do NaNoWriMo e retomar de onde parei. Continuar em movimento, mesmo sem planos, mesmo sem saber para onde ir. Contudo, minha cabeça fervilha mais do que antes, mais do que nunca. Por isso, esta crônica.


Como o croissaint na velocidade de quem não quer ser engolida pelo mundo, mesmo sendo atropelada constantemente por ele. À minha frente, um casal. Ela sem as sapatilhas; ele conversando e massageando um dos pés dela sob a mesa. Há amor e cumplicidade. Será que eles já perderam alguma partida de xadrez pelo menos alguma vez na vida?


Leio textos sobre Clarice e me pergunto se ela encontrou, afinal, a paz na palavra. A procura se findou com o último texto escrito, no ponto final de sua morte ou ainda continua? Quando eu olho para frente, não tenho mais perspectiva. Queria me tornar uma senhora feliz e entusiasmada, mas sigo aqui, uma jovem no fim da década balzaquiana com ar amargurado, que não sabe qual é o seu lugar no mundo. Será que há um lugar que caiba este latifúndio?


Durante a semana tive conversas duras. O mundo não é mais o mesmo. Tudo está morrendo. Ao mesmo tempo, o mundo continua sendo mundo. Se eu pegar os textos do meu poeta favorito, escritos há praticamente um século, lerei poemas, contos e crônicas sobre guerras e destruição da natureza. Todas as notícias da semana afirmam que nada sobra de novo no front.


Uma dupla se senta ao meu lado. Elas não param de falar sobre o assunto da minha fobia. Estou passando mal só de ouvi-las e não trouxe os fones de ouvido. Tento abstrair. Não quero ter que mudar de lugar, não quero ser rude. Sei que rugir sem motivo aparente é loucura, mas minha vontade é a de enlouquecer de vez, de morrer de vez, de acabar com tudo.


Um amigo me diz que isso é estar vivo, que a humanidade veio para se autodestruir, que é da nossa natureza, que não há jeito de fugir da essência que a nossa espécie traz em seu DNA. Minha psicóloga diz que é uma fase, que tudo vai passar, que é preciso erguer a cabeça, que esperança é fundamental, que vê potencial em mim e em tantas outras pessoas a quem ela atende, que tenho que tomar cuidado para não absrver o que não é meu. Mas a verdade é que cidades são arrasadas. Tudo morre numa velocidade assustadora. E eu não acredito em mais nada. Não me lembro mais das regras lógicas do jogo.


Questiono se Deus ou qualquer outra força maior existe(m). Retiro a culpa de Lilith e de Eva. Elas, mulheres como eu, feitas de barro frágil, obrigadas a carregarem o peso do pecado do mundo, o peso da ausência de perfeição. Retiro a culpa delas, como gostaria de fazer com as minhas. Refaço os caminhos do passado repetindo a mim mesma que eu fiz o meu melhor com as informações que eu tinha. Que eu estou fazendo o meu melhor com o que tenho hoje. Há uma fera que quer sair. Eu a prendo enjaulada. Há luta, há desgaste. Ela vaza pelos meus poros, heroina em sua própria jornada. 


Enxaqueca.


Me forço a escrever mesmo assim, mesmo sabendo que estou me repetindo, porque hoje ouço demais para penetrar no reino das palavras. É preciso surdez para adentrar a este reino. A surdez da entrega que me falta. Me forço e me repito, porque também busco algo que não sei o que é. Me forço, por isso escrevo, mesmo sabendo que as portas do reino estão fechadas. Ouvi de um aluno do ensino médio que textos tristes são os melhores. (Não queria escrever coisas tristes, mas talvez essa seja uma das poucas coisas que sei fazer bem.) Concordo com ele e continuo. Me mantenho em movimento. Isso é importante. Me mantenho em movimento mesmo quando não sinto o movimento.


As amigas que estavam ao meu lado vão embora; o casal fofo à minha frente, também. Encaro a tela em branco. Fico sem ideias. Jogo “Chagall" no Google para ver as pinturas que tanto impressionaram Clarice. A leveza é tamanha que, em um dos quadros, a mulher flutua. Sinto vontade de pintar. Me lembro do pacote fechado de aquarela que tenho em casa, mas tenho dúvidas sobre o quanto possível fazer arte quando não se tem um teto todo para chamar de seu.


Tudo morre numa velocidade assustadora. A maré cheia é devastadora de sonhos.


Me lembrei desta música enquanto escrevia. :) 
Saudades, Cássia. 💚

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