sábado, 18 de maio de 2024

Maré cheia

Foto de Jakob Owens, via Unsplash.
  

Sou covarde até para a morte.


O lugar em que aprendi a jogar xadrez, em que retornei para celebrar o meu aniversário de trinta anos, não existe mais. Soube quando quis voltar lá e, simplesmente, fui impedida: portas e janelas fechadas. Nenhum José para, sequer, perguntar “e agora?”. O que fazer quando os lugares das memórias afetivas se vão? O aniversário de 30 foi um dos mais divertidos, isso porque  foi simples. Também foi o ano em que ganhei balões. Aos 30 anos, foi a primeira vez que ganhei balões. Quase uma década depois ainda me emociono com a singeleza do gesto: uma tentativa simbólica do desejo de uma amiga-irmã de me ver a voar alto, de me ver indo longe. Já daquela partida, me lembro muito pouco. A lógica do jogo (de tabuleiro e do amoroso) nunca fez sentido na minha cabeça. Demorei para vencer (ganhei na quinta ou sexta partida), perdi no amor. Rebaixei na vida.


O importante é se manter em movimento. Subo a rua até a avenida, procuro outro lugar tranquilo para tomar um café e escrever. Peço um croissant e um café no maior tamanho possível. Os planos eram sentar, rever o eterno projeto do NaNoWriMo e retomar de onde parei. Continuar em movimento, mesmo sem planos, mesmo sem saber para onde ir. Contudo, minha cabeça fervilha mais do que antes, mais do que nunca. Por isso, esta crônica.


Como o croissaint na velocidade de quem não quer ser engolida pelo mundo, mesmo sendo atropelada constantemente por ele. À minha frente, um casal. Ela sem as sapatilhas; ele conversando e massageando um dos pés dela sob a mesa. Há amor e cumplicidade. Será que eles já perderam alguma partida de xadrez pelo menos alguma vez na vida?


Leio textos sobre Clarice e me pergunto se ela encontrou, afinal, a paz na palavra. A procura se findou com o último texto escrito, no ponto final de sua morte ou ainda continua? Quando eu olho para frente, não tenho mais perspectiva. Queria me tornar uma senhora feliz e entusiasmada, mas sigo aqui, uma jovem no fim da década balzaquiana com ar amargurado, que não sabe qual é o seu lugar no mundo. Será que há um lugar que caiba este latifúndio?


Durante a semana tive conversas duras. O mundo não é mais o mesmo. Tudo está morrendo. Ao mesmo tempo, o mundo continua sendo mundo. Se eu pegar os textos do meu poeta favorito, escritos há praticamente um século, lerei poemas, contos e crônicas sobre guerras e destruição da natureza. Todas as notícias da semana afirmam que nada sobra de novo no front.


Uma dupla se senta ao meu lado. Elas não param de falar sobre o assunto da minha fobia. Estou passando mal só de ouvi-las e não trouxe os fones de ouvido. Tento abstrair. Não quero ter que mudar de lugar, não quero ser rude. Sei que rugir sem motivo aparente é loucura, mas minha vontade é a de enlouquecer de vez, de morrer de vez, de acabar com tudo.


Um amigo me diz que isso é estar vivo, que a humanidade veio para se autodestruir, que é da nossa natureza, que não há jeito de fugir da essência que a nossa espécie traz em seu DNA. Minha psicóloga diz que é uma fase, que tudo vai passar, que é preciso erguer a cabeça, que esperança é fundamental, que vê potencial em mim e em tantas outras pessoas a quem ela atende, que tenho que tomar cuidado para não absrver o que não é meu. Mas a verdade é que cidades são arrasadas. Tudo morre numa velocidade assustadora. E eu não acredito em mais nada. Não me lembro mais das regras lógicas do jogo.


Questiono se Deus ou qualquer outra força maior existe(m). Retiro a culpa de Lilith e de Eva. Elas, mulheres como eu, feitas de barro frágil, obrigadas a carregarem o peso do pecado do mundo, o peso da ausência de perfeição. Retiro a culpa delas, como gostaria de fazer com as minhas. Refaço os caminhos do passado repetindo a mim mesma que eu fiz o meu melhor com as informações que eu tinha. Que eu estou fazendo o meu melhor com o que tenho hoje. Há uma fera que quer sair. Eu a prendo enjaulada. Há luta, há desgaste. Ela vaza pelos meus poros, heroina em sua própria jornada. 


Enxaqueca.


Me forço a escrever mesmo assim, mesmo sabendo que estou me repetindo, porque hoje ouço demais para penetrar no reino das palavras. É preciso surdez para adentrar a este reino. A surdez da entrega que me falta. Me forço e me repito, porque também busco algo que não sei o que é. Me forço, por isso escrevo, mesmo sabendo que as portas do reino estão fechadas. Ouvi de um aluno do ensino médio que textos tristes são os melhores. (Não queria escrever coisas tristes, mas talvez essa seja uma das poucas coisas que sei fazer bem.) Concordo com ele e continuo. Me mantenho em movimento. Isso é importante. Me mantenho em movimento mesmo quando não sinto o movimento.


As amigas que estavam ao meu lado vão embora; o casal fofo à minha frente, também. Encaro a tela em branco. Fico sem ideias. Jogo “Chagall" no Google para ver as pinturas que tanto impressionaram Clarice. A leveza é tamanha que, em um dos quadros, a mulher flutua. Sinto vontade de pintar. Me lembro do pacote fechado de aquarela que tenho em casa, mas tenho dúvidas sobre o quanto possível fazer arte quando não se tem um teto todo para chamar de seu.


Tudo morre numa velocidade assustadora. A maré cheia é devastadora de sonhos.


Me lembrei desta música enquanto escrevia. :) 
Saudades, Cássia. 💚

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6 comentários:

  1. Te desejo marés baixas e calmas em sua vida.

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!

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    Instagram

    Até mais, Emerson Garcia

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  2. Amei seu texto, vários momentos e reflexões.
    Gosto de textos assim. Sobre a vida. Sobre o momento. Sobre os sentimentos.
    Sempre me identifico com algo, sempre vejo as coisas de uma nova perspectiva.
    Adorei! :)

    https://www.heyimwiththeband.com.br/

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    Respostas
    1. Oi, Valeria!
      Obrigada pelas palavras tão bonitas ao meu texto. Eu fiquei emocionada aqui. :)
      Um beijo :*

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  3. Sério! Como você se expressa bem através das palavras! E acaba ajudando quem está do outro lado da telinha. ♥ Nunca, nunquinha deixe esse dom. E nunca, nunquinha desista. Mesmo sem saber para onde ir. Se isso serve de consolo: tá todo mundo assim. Ou quase todo mundo! Vai passar, por mais clichê que pareça. Um dia de cada e a maré vai acalmar! ♥

    Com carinho, Carol.
    www.pequenajornalista.com

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    Respostas
    1. Oi, Carolzinha! Eu fiquei muito feliz com o seu comentário. Obrigada por deixar o meu coração quentinho <3
      Um beijo

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Algumas Observações | Ano 17 | Textos por Fernanda Rodrigues. Tecnologia do Blogger.