Fenestra é janela em latim. De- é um prefixo, também latino, que significa movimento de cima para baixo. Logo, podemos descrever a ação de atirar algo pela janela como defenestrar, e o ato, em si, como defenestração.
Embora seja professora de língua portuguesa, não estou aqui para dar aula sobre a origem das palavras. Tampouco, para dizer que aprendi a etimologia de
defenestração nas aulas de latim ou lendo algum dos (maravilhosos!) livros do
Caetano W. Galindo. Escrevo hoje na tentativa de defenestrar no papel algumas palavras carinhosas a pessoa que me ensinou o significado do vocábulo de uma maneira muito mais engraçada do que o primeiro parágrafo metódico do meu texto. Tal pessoa é Luis Fernando Veríssimo.
Quando criança, meu pai trabalhava na editora Abril. Ele sempre trazia um exemplar da Veja e da Veja SP para casa. Eu, por minha vez, sempre folheava as revistas nada atrativas para uma criança e lia aquilo que conseguia compreender: a última página, a página das crônicas.
Claro que, naquela época, eu não entendia que crônica era um gênero discursivo que, como explicou o Antônio Cândido no famoso texto publicado na coleção Para Gostar de Ler, fala sobre temas ao rés do chão. Lia porque a simplicidade me divertia.
Anos mais tarde, já frequentando a biblioteca, descobri aquele autor meio careca, meio gordinho, que tinha muitos — mas muitos MESMO — livros publicados em que narrava cenas do cotidiano. As tais das crônicas. Comecei com as Comédias para se ler na escola e não parei mais. Veríssimo, pra mim, tornou-se sinônimo de verdade, uma verdade íntima que me revelou uma epifania solar: também queria escrever acerca dos causos e mais causos que tanto observara.
No meio de todos aqueles textos, lá estava a tal da Defenestração.
Se hoje defenestro, do alto da minha caixola, palavras no papel, é porque antes de mim houve um Luis Fernando (veja só, Fernando, assim como eu!), que do alto de sua timidez não deixava de observar (!!!) tudo ao redor e que fazia questão de amar a língua como instrumento não só de trabalho, mas de vida. Por isso, a notícia de sua passagem, me deu um nó no peito. Perdemos um dos grandes!
O nó veio por saber que ele é eterno; mas, agora, etéreo. Sublimou-se em sua presença física, não vai mais defenestrar palavras sobre nós, ainda que seu legado se sustente firme, forte, sorridente, crítico e bem-humorado.
Certa vez ouvi o Mick Jagger dizendo que só se sente velho quando ele vê alguém que ama partindo. A idade pesou por aqui, no dia em que o Veríssimo se foi.
Mas, para não terminar esta crônica de maneira tão solene e triste (acho mesmo que o Veríssimo detestaria isso), deixo abaixo a Defenestração, do próprio autor — muito melhor do que as minhas palavras, que de sinceras soam piegas. Divirtam-se:
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Luis Fernando Veríssimo (Imagem: Unesp/divulgação) |
Defenestração
Luis Fernando Veríssimo
Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A falácia Amazônica. A misteriosa falácia Negra.
Hermeneutas deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
—Os hermeneutas estão chegando!
— Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisa recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
— Alô...
— O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
— Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que o corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
— Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria assim defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo tê-la usado uma ou outra vez, como em:
— Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata. Um dia finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino, ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal,não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
— Les defenestrations. Devem ser proibidas.
— Sim, monsieur le ministre.
— São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
— Sim, monsieur le ministre.
— Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
— É essa estranha vontade de atirar alguém pela janela, doutor...
— Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar — diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suite matrimonial, no 17º andar.
— Querida...
— Mmmm?
— Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
— Fala amor.
— Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para cama:
— Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
— Fui defenestrado...
Alguém comenta:
— Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar essa crônica. Se ela sair é porque resisti.
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Defenestração. In: O nariz e outras crônicas. 6.ed. São Paulo: Ática, 1998. p. 82-84.
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