domingo, 20 de outubro de 2024

Reflexões sobre aprender a perder quem se ama

Imagem por Kaboompics, via Pexels.


Perder alguém que se ama não é fácil. Há dor, há vazio, há aquela eterna sensação de chão se abrindo debaixo dos próprios pés, ainda que haja chão e que a gente consiga tocar o nosso próprio corpo. Nossa carne vive, respira, se move — mas a do outro, não. Ela não está mais respirando, coçando a cabeça, sentindo fome, medo, frio, amor. Uma linha tênue separa os mundos, um véu translúcido diz quem tem o direito ou não de envelhecer.

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A música preenche os espaços vazios: o abraço do desquerido que partiu coração; a falta de companhia na academia; a dança sozinha no quarto depois de um dia ruim no trabalho; a canção de ninar para o sono que não vem.

A música cria laços: a viagem de carro cantada a plenos pulmões; a trilha sonora enquanto encara a fila da compra de um ingresso; a fila presencial antes de entrar no show; a canção de ninar cantada para a barriga que gesta; a música da formatura que marca uma vida; a música que você cresceu vendo os seus avós cantarem e dançarem. A primeira valsa. A trilha sonora da adolescência que antes era dos avós e dos pais e agora é sua, porque os Beatles e os Rolling Stones são eternos. A trilha sonora da adolescência que é só sua e dos seus amigos que amam rock, pop e que, no fundo, também são emos. Laços de amor. Construção de identidade. Identificação com um jeito de ser, com uma cultura, com uma língua, com um grupo.

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Fui estudar línguas porque não queria depender de tradutor. Quando era adolescente, o Google não era tão bom e a gente ou precisava de uma pessoa proficiente, ou carregava a pilha de dicionários bilíngues por aí e perdia um tempão buscando palavra por palavra como quem procura agulha em palheiro. Eu sabia que cedo ou tarde eu veria os meus ídolos. Eu queria conseguir me comunicar sem depender. Eu procurava independência, ainda que houvesse distância entre nós.

Estudar me ajudou não só a compreender o que cantava, mas também me deu amigos — os laços novamente —, me deu uma profissão, me abriu os olhos para o mundo. Tudo porque eu queria saber o que os cinco caras da rua de trás estavam dizendo. Tê-los como ídolos me deu sonhos. Sonhos que pude realizar não só ao conhecê-los, mas de incontáveis outros jeitos.

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Não sei lidar com doença, não sei lidar com a morte. O luto para mim é muito difícil, desafiador. Sou uma pessoa apegada e isso complica as coisas. Meus maiores medos envolvem perder pessoas que amo. Sejam essas pessoas familiares, amigos, ídolos. Todas elas, em maior ou menor grau, são do meu convívio diário. Mesmo aquelas que todo mundo diz que não sabem que eu existo. Todas elas, estão aqui: pegando na minha mão, me abraçando, dando apoio no momento difícil. Quantas vezes eu percebi que o meu mal humor era porque estava há tempos sem ouvir música, ou assistir a Friends?

A arte existe com fim em si mesma, mas ela salva a mim, a você, a milhares de pessoas. Ignorar a importância do artista, é negar uma parte de si mesmo.

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Dizem que as únicas certezas que temos na vida dizem respeito ao nascimento e à morte. Eu incluiria uma terceira: envelhecer é sinônimo de perda. Quanto mais velhos ficamos, mais passamos a perder. Primeiro essa perda vem distante: é um amigo que perde um avô ou uma avó, depois somos nós que perdemos os nossos avós. Até que os lutos vão se aproximando. A morte vai dando os seus lembretes: um pet que morre, depois algum amigo de infância, um professor, nossos ídolos, um irmão, nossos pais... Cada um levando um pedaço nosso, igualmente grande, igualmente precioso, igualmente válido, anda que cada luto seja vivido à sua maneira.

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Digo que não sei lidar com perdas, porque elas são imprevisíveis e não há mesmo uma receita. Por ironia, é justamente essa imprevisibilidade que nos lembra que estamos vivos, respirando, levando esses quilos de carne e ossos por aí, para trabalhar, amar, sentir. O luto é o tipo de coisa que cada um atravessa de um jeito. Cada um escolhe — conscientemente ou não — o que fazer com esse amor que não tem mais para onde ir.

Não há nada mais insensível do que querer ditar como o outro deve lidar com esse amor represado.

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Assim como não sei lidar com o luto, não sei bem como terminar essa crônica. O que posso dizer é que se você está passando por isso, não importa quem você tenha perdido, você tem todo o meu amor.


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10 comentários:

  1. Só quem sabe é quem passa pelo luto da dor e da perda. Ótimo esse texto, porque ele é humano e sentimental. Todos nós temos alguém amado que a vida nos levou.

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!

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    Até mais, Emerson Garcia

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  2. Super concordo que envelhecer é sinônimo de perda. Vejo meus pais perdendo os amigos, ficando "pra trás" (única vez que é bom ficar pra trás) e a vida vai ficando mais vazia, com menos cor. A perda, seja lá como for, sempre é uma coisa complicada para se lidar.

    Dei uma atualizada no meu cantinho - quando puder, adoraria te ver por lá.
    Bj e fk c Deus
    Nana
    https://procurandoamigosvirtuais.blogspot.com/

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    Respostas
    1. Oi, Nana!
      Eu acho envelhecer muito bonito, mas como todas as outras fases da vida, tem suas vantagens e desvantagens.
      Perder é uma dessas desvantagens.

      Visitarei o seu cantinho!
      Um beijo carinhoso :*

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  3. Que lindo, Fê! Eu estou lidando com o luto da perda da minha avó querida e gostei muito de ler suas palavras, é realmente um momento difícil, mas tento sempre lembrar de como ela marcou de forma positiva minha vida. Um beijo grande! <3

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    1. Oi, Uaba! Sinto muito pela sua perda. :(
      Obrigada por ler o texto com tanto carinho e atenção.

      Um beijo :*

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  4. Achei essa reflexão bem legal, usar a música para criar laços e também para aprender a deixar ir. Gostei muito e com certeza escolhendo as músicas certas é muito bacana e nos ajuda refletir muito.
    Beijos.


    https://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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  5. Que texto profundo e tocante! Ele me fez refletir sobre como a música e a arte em geral têm esse poder quase mágico de preencher espaços e criar laços, mesmo nos momentos mais desafiadores da vida. Me identifiquei muito com a parte sobre estudar línguas para entender os ídolos e sobre como a arte salva — é como se cada canção, filme ou episódio de série tivesse o poder de segurar nossa mão quando precisamos. Obrigada por compartilhar essas palavras tão sensíveis.

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