domingo, 18 de maio de 2025

Expectativas desleais (um bom encontro é de dois)

Imagem por Rattanakun.



“Não tenho o que dizer e mesmo se tivesse, são só palavras.”


Que diferença faria? Fátima olhava para a tela do celular meio incrédula. Depois de tantos anos, aquele inferno se repetia: sempre que ela criava um perfil numa rede social nova, Álvaro aparecia. “Recomendações”, “Talvez você conheça”, “Pessoas que seus amigos seguem” ou quaisquer outras versões a que ela chamava de “trago uma porcaria de volta para a sua vida com um click". Não adiantou excluir o número dele do celular, não adiantou apagar todos os e-mails dele do contato, não adiantou destruir todas as trocas. Quase 15 anos depois ele continuava reaparecendo. Ora se gabando do próprio trabalho, ora com um perfil vazio, sem publicação alguma além da foto e do texto do perfil. Um fantasma que se materializava por meio de bytes na rede mundial de computadores. Já Fátima? Bem, ela continuava pesquisando como bloqueá-lo da tal nova rede social do momento. Movimentos cíclicos. Assim a vida seguia. Ou seguiria, porque desta vez foi diferente. Não deu tempo de Álvaro aparecer para ela, não deu tempo de Fátima fazer a pesquisa. O block tão necessário não foi feito com a antecedência preventiva.

Era uma tarde de sábado bem chuvosa, dessas que fazem a cidade toda alagar, transformando tudo em puro suco do caos. Depois de horas entre leituras e séries, Fátima parou para tirar o celular da tomada e foi ali que ela viu a notificação de uma mensagem de alguém que a quem não seguia.


“Oi… Desculpa escrever assim… do nada…. Tem jeito… de a gente… conversar?”


Quase 15 anos depois. Almost fifteen fucking years later. Por quê? O nome de Álvaro parecia brilhar mais do que o comum na tela, embora não tivesse nada de especial. Não deveria ter. Fátima sabia que ninguém ressuscitaria daquela conversa, não haveria milagre saindo das catacumbas. Por mais que ela tenha sonhado com esse momento por anos. Por mais que ela tenha ensaiado mentalmente o que diria em looping. Fátima conhece Álvaro como ninguém. E ele a conhecia a versão dela, que ele matou quando a abandonou, como ninguém.

“Acho melhor não.”


Fátima andou por todo o pequeno apartamento, celular na mão relendo a mensagem de Álvaro, palavra por palavra, sabendo que não havia paz. Mesmo quando o mundo se transformou, e as vidas online e offline passaram a caminhar juntas, nunca houve paz. Não houve paz quando Álvaro nunca quis assumir o relacionamento. Nunca houve paz, quando ele a deixou na mesa sozinha para cumprimentar o amigo, como se ele não estivesse acompanhado. Nunca houve paz quando ele pedia para que ela alisasse o cabelo. Nunca houve paz quando ela abriu mão do sonho de ter gatos só porque ele ama cachorros ou quando disse que teria filhos, mesmo quando ela nunca quis crianças. O ar saiu ruidoso de seus pulmões. Não, não tem mais jeito.

O corpo de Fátima tombou no sofá desolado. Há tempos não pensava nele ou na intervenção divina que os colocasse em contato novamente. Agora ela estava ali, diante das palavras de Álvaro, um Álvaro que estava perguntando se ainda tinha jeito.

“Não tem mais jeito. It's over.

Seria mais fácil bloqueá-lo e sumir do mapa mais uma vez. Mas, onde estava a bendita função de bloqueio? Por que raios as redes sociais não deixam isso às claras? Abriu o Google e iniciou a já atrasada pesquisa, até que a notificação subiu outra vez:

“Eu sei… que você está chateada… eu fiz muita coisa errada… estou tentando corrigir… a vida mudou muito… queria te dizer… o que eu sinto…”

As reticências sem sentido – como sempre, infestando as mensagens como formigas de fogo – irritavam Fátima profundamente. A raiva rápida que corria pelo corpo a fez se levantar para mais uma ronda descontrolada pelo minúsculo espaço. Por que logo agora que a vida estava se ajustando? Por quê? Jogou o aparelho sobre a cama – It’s too much. Pesado demais. – Entrou no banheiro e fez xixi com a porta aberta, a gata a observando de soslaio. Voltou ao quarto, não preciso responder isso agora, pegou uma muda de roupa, retornou ao banheiro e entrou embaixo do chuveiro quente. É só bloquear. Por que tanto cuidado em não sumir do nada, quando o Álvaro sempre esteve cagando pra mim? Maldita responsabilidade afetiva.

Ao sair do banho, uma notificação e uma tentativa de ligação de vídeo fez com que Fátima retornasse à sua pesquisa. Coragem. A vida é feita de coragem.

“Há tantas pessoas especiais por aí, você não precisa de mim.”

“Você não entende… você nunca… entendeu…”

“Álvaro, é melhor que você se cure de mim.”


Finalmente ela encontrou um vídeo-tutorial de 30 segundos chamado “como bloquear um desquerido na nova rede social do momento”. Antes de seguir o passo a passo, voltou ao chat e completou:

“Boa sorte.”

Álvaro está digitando…


Conto inspirado na belíssima canção da Vanessa da Mata com o Ben Harper. 

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