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domingo, 15 de junho de 2025

{Resenha} Essa história está diferente: dez contos para dez canções de Chico Buarque, org. Ronaldo Bressane

domingo, junho 15, 2025 3

Publicado pela Companhia das Letras, Essa história está diferente: dez contos para dez canções de Chico Buarque é uma grande celebração tanto da obra do Chico Buarque, quanto de como literatura e música podem caminhar juntas. A obra foi organizada por Ronaldo Bressane e traz contos de Alan Pauls, André Sant’Anna, Cadão Volpato, Carola Saavedra, João Gilberto Noll, Luis Fernando Verissimo, Mario Bellatin, Mia Couto, Rodrigo Bressane e Xico Sá.


Cada um dos autores escolheu uma canção do Chico, para ter como inspiração para a escrita de um texto. Houve uma liberdade de como a criação do conto se daria e é justamente isso que torna o livro muito interessante. A diagramação do livro ajuda muito a observar como cada escritor lidou com o seu processo: há o título do conto, o nome do autor, a letra da música escolhida e o texto. Há escritor que optou por colocar a música como elemento da narrativa, há autor que usou cada estrofe como partes do conto, há ainda o que transformou versos em falas. Além disso, há contos estruturados de diferentes modos: blocões, contos divididos em partes sem títulos, em partes com títulos, contos sem divisões, contos com um e com múltiplos narradores.


É notável como o mesmo tema — da música e do conto — pode ser visto com diferentes olhares. Esse exercício criativo nos demonstra como a vida é múltipla e a criatividade move as pessoas. Os relacionamentos humanos permeiam a maior parte dos temas. Isso também é interessante de notar, porque cada autor foi para uma vertente: pai e filha, namorado e namorada, chefe e funcionário, amante e amado. Os retratos são muitos e isso também torna a leitura muito agradável e dinâmica. Para quem gosta tanto de observar processos criativos, quanto de boa prosa, e da obra do Chico Buarque Essa história está diferente: dez contos para dez canções de Chico Buarque é uma grande pedida!




Livro: Essa história está diferente: dez contos para dez canções de Chico Buarque 
Autores: Alan Pauls, André Sant’Anna, Cadão Volpato, Carola Saavedra, João Gilberto Noll, Luis Fernando Verissimo, Mario Bellatin, Mia Couto, Rodrigo Bressan e Xico Sá
Organização: Ronaldo Bressane
Tradução dos contos "O direito de ler enquanto se janta sozinho", "Os fantasmas do massagista" e "A mulher dos meus sonhos e outros sonhos": Josely Vianna Baptista
Páginas: 264
Editora: Companhia das Letras
Apresentação/Sinopse: Em Essa história está diferente, dez autores de estilos diversos recriam em ficção o cancioneiro do compositor carioca Chico Buarque. Na composição do time de autores, organizado pelo escritor e jornalista Ronaldo Bressane, a ideia foi universalizar o imaginário do autor de Budapeste e Leite derramado. Pelo caráter multifacetado, a obra do compositor de versos como "O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano/ Meu maestro soberano/ Foi Antonio Brasileiro" sintetiza o Brasil - e cada vez mais conquista o mundo. Os registros literários captados por esta antologia foram os mais díspares: alguns contos se baseiam fielmente nos "causos" musicados por Chico, outros os usam como trilha sonora, cenário, atmosfera, outros emprestam das canções a estrutura, e há aqueles que somente o utilizam como mote.
Entre os autores internacionais, o argentino Alan Pauls adaptou "Ela faz cinema" e a transformou na história de um pai zeloso que combina o ciúme pela mulher e pela filha com manias como ler num restaurante enquanto come; o mexicano Mario Bellatin inspirou-se em "Construção" para ambientar a narrativa de um homem que, numa consulta ao fisioterapeuta, escuta uma história bizarra envolvendo uma declamadora de versos e um papagaio; o moçambicano Mia Couto criou um conto romântico a partir de "Olhos nos olhos"; e o também argentino Rodrigo Fresán escolheu "Outros sonhos" para um conto-ensaio tecido sobre variações oníricas.
Entre os brasileiros, Carola Saavedra esmiúça em detalhes uma discussão de relacionamento em sua narrativa baseada em "Mil perdões"; André Sant'Anna preferiu "Brejo da cruz" para falar do presente e do futuro dos meninos de rua; Cadão Volpato parte de "Carioca" para tratar da história de amor entre um jovem intelectual e uma misteriosa garota que se hospeda em sua casa; João Gilberto Noll recriou "Vitrines" em registro de novela gótica, focando a relação obsessiva entre dois homens que se conhecem num shopping; Luis Fernando Verissimo cozinhou "Feijoada completa" em chave de comédia da vida privada; e, por fim, Xico Sá reescreveu "Folhetim" como um triângulo amoroso contado por um carioca desmemoriado que talvez tenha perdido a mulher numa Quarta-Feira de Cinzas.
Uma surpresa a cada virada de página. Com as canções de Chico na cabeça, o leitor vai se admirar com as inúmeras possibilidades narrativas que elas inspiram e com o inesgotável gênio criativo desses principais nomes da literatura contemporânea.
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domingo, 25 de maio de 2025

{Resenha} Também eu danço, de Hannah Arendt

domingo, maio 25, 2025 2
Você sabia que a Hannah Arendt também é poeta?


Também eu danço é um livro póstumos de poemas da filósofa e pensadora Hannah Arendt, publicado no Brasil pela editora Relicário e pelo Goethe Institut, em edição bilíngue — alemão e português. A tradução e o prefácio (“Arednt poeta”) ficaram a cargo de Daniel Arelli. A obra conta ainda com texto de orelha da professora Patrícia Lavelle e com um posfácio intitulado “Sobre os poemas de Hannah Arendet”, assinado por Irmela von der Lühe.

A maior parte dos poemas são curtos e alguns seguem uma estrutura que respeita esquemas de rima — muitos deles, com um tom bem-humorado. Muitos deles retratam o interior da poeta, de forma a relatar o que lhe era importante: as amizades e os seus amores.

51.
[Sem Título]
O poema espesso adensa
salva a essência contra o infenso.
Casca, quando irrompe a essência
mostra ao mundo um dentro denso.

(Hannah Arendt, Também eu danço, página 119)

Sua lírica foi escrita em 2 ciclos — o primeiro, vai de 1923 a 1926; o segundo, de 1942 a 1961 — tendo um hiato entre 1927 e 1941. Como dito, os amores e as amizades foram importantes para a produção. Há poemas dedicados/escritos para o amor jovem que ela sentiu pelo professor casado Martim Heidegger, antes de ele se relacionar com o Nazismo. Ainda dentro dos poemas de amor, há os versos ao seu primeiro marido Günther Anders, e ao filósofo Heinrich Blücher, com quem dividiu o segundo matrimônio. No hall dos amigos, temos poemas dedicados a grandes nomes, a exemplo de Walter Benjamin e Hermano Broch; já no das leituras, Arendt cita Goethe e Platão.

Tanto o texto de abertura, de Daniel Arelli, quanto os textos que vêm ao fim dos poemas, ajudam demais na compreensão dos poemas. Além disso, há notas no fim do livro que apoiam a leitura dos versos.

A leitura de Também eu danço é fluida, mas que nos coloca para pensar em muitos momentos. Há um tom existencialista em muitos dos versos que coloca o leitor para refletir sobre a poética do livro e a poética vista no dia a dia atual. Em muitos momentos, há a provocação de onde mora a poesia e como essa poética é um lugar. Prato cheio para os leitores amantes da leitura lírica. 😉

63.
[Sem título]
Felicidade é ferida
e seu nome é estigma
não cicatriz. É o que diz
a palavra do poeta.
O dizer da poesia
é lugar, não lar.

(Hannah Arendt, Também eu danço, página 119)

Capa.


Livro: Também eu danço: Poemas
Título original: Ich selbst, auch ich tanze: Die Gedichte
Autora: Hannah Arendt
Tradução: Daniel Arelli
Edição: Relicário e Goethe Institut
Páginas: 228
Apresentação: “Pela primeira vez o público leitor de língua portuguesa tem acesso à totalidade da produção poética de Hannah Arendt. Embora estejam disponíveis traduções ao português de alguns poemas esparsos da autora, não raro em artigos acadêmicos e como suporte de interpretações de sua produção teórica, só agora vêm a público em português, coligidos, todos os 71 poemas produzidos por Arendt no decorrer de sua vida. Esse aparente atraso – afinal, a pensadora faleceu há quase meio século – não é uma singularidade do mercado editorial brasileiro ou lusófono. Mesmo na Alemanha, terra natal da autora e em cuja língua foram escritos os poemas aqui traduzidos, a produção poética de Arendt só encontrou em 2015 sua edição definitiva (que serve de base a este livro).
Esse fato se deve a uma série de razões, não por último a procedência e o destino incerto de vários desses textos. Com efeito, a produção poética de Hannah Arendt se deu de forma bastante intermitente e irregular no decurso de sua vida. Dos 71 poemas que chegaram até nós, Arendt compôs os 21 primeiros entre 1923 e 1926, quando mal entrara na idade adulta – ela nasceu em 1906 – e se encontrava em intensa relação (e correspondência) com o filósofo Martin Heidegger, o destinatário ideal e provavelmente também grande inspirador dessas composições de juventude. Já as demais 50 peças poéticas de Arendt foram compostas de forma mais esparsa entre 1942 e 1961 e acompanharam diferentes momentos da vida e da produção intelectual da autora. De 1961 a 1975, em seus últimos 14 anos de vida, portanto, a filósofa não mais escreveu poemas.” (Do prefácio de Daniel Arelli)
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domingo, 11 de maio de 2025

{Resenha} Escrever sobre escrever poesia, de Eduardo Milán

domingo, maio 11, 2025 4


Escrever sobre escrever poesia é uma obra estruturada em três partes com sete ensaios que refletem vários pontos da escrita poética. Seu autor, Eduardo Milán, é um poeta e ensaísta uruguaio, filho de mãe brasileira, que atualmente vive no México. Seus textos têm, portanto, um olhar profundo sobre a arte produzida na América Latina, ainda que a poética latino-americana tenha influência de grandes nomes europeus.

Conforme aponta Teresa Arijón no prefácio "Eduardo Milán. Quando no pensamento/retumbam tambores e zumbam ventos", o livro de Milán nos traz "Escritos numinosos, rigorosos, rasgados, cometidos e acometidos por um dos mais nobres — no sentido de singular ou particular em sua espécie — poetas da América Latina. Um poeta que é argonauta, pedra-ímã, ocelo, eclipse". (página 7)

Como um erudito, Milán traz para dentro do seu texto o intertexto com grandes nomes, a exemplo de Rimbaud, Marllamé, Baudelaire, Walter Benjamin, Nicanor Parra, Ezra Pound, Pablo Neruda, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Ele também resgata o Simbolismo e as Vanguardas. Sendo assim, é importante ter o mínimo de conhecimento prévio sobre sobre os autores e os períodos referidos para tornar a leitura dos ensaios mais fluida. 

"Em todos poema há um cruzamento de caminhos. Em um grande poema há mais de um cruzamento de caminhos. A metáfora é ainda a de ir, a de ir indo. Não quero entrar no motivo da viagem porque entrar aí é realmente entrar: não saímos por qualquer porta na aventura do conhecimento. Ulisses, por mais dados. Em todo poema o maior prazer é perceber a eleição de um caminho, não de outro, a aposta pela direção única que nos guiará por onde só intuimos e não necessariamente sabemos". Eduardo Milán (página 12)

Os textos são gostosos de ser lidos por se comporem de uma escrita ágil em que o autor aborda temas como o que é ler e escrever poemas, a passagem (do poeta e do leitor) pelo intertexto que os versos trazem e como este intertexto proporciona o encontro, a suspensão que ocorre no tempo da leitura e o ritual de decomposição da poética lida, a importância do momento prévio (anterior) que remete ao conceito de antipalavra, a poesia como aproximação do que queríamos dizer (e cuja linguagem não acompanha o pensamento exato). Ele continua costurando como o processo de colonização interfere na produção poética dos modernistas, de como os temas catastróficos atuais (vírus, terrorismo, pandemias) são tidos como "as promessas da ordem atual do mundo que protege o mundo que se situa sob essa ordem, às margens da arte" (página 24) e como isso acaba criando a demanda do ofício do poeta.

"Escrever poesia é estar exilado antes de sair ao exílio. 'Sair ao exílio': eis aí uma quantidade abismal, uma vertical expressiva. É como ir caindo sem jamais tocar o chão 'um caindo que não encontra chão', uma expulsão ao éter, um parto ao domínio do imenso. Há que colocar maiúscula em 'imenso'? Prefigura uma porta de entrada à saída. Há um porteiro na saída? Um guardião na entrada? Não foram vistos. Talvez porque o exílio é um distanciamento, não só do país de origem; um distanciamento permanente, em uma constante 'linha de fuga' o exílio se distancia do exílio." Eduardo Milán (página 27)

O exílio, o fragmento, a suspensão. Como tudo isso faz parte do fazer poético (sobretudo, do latino-americano). É interessante notar como Milán apresenta tudo isso ao leitor com um olhar de quem também nasceu abaixo da linha do Equador e que, portanto, conhece as peculiaridades tanto da população leitora, quanto do seu fazer artístico como um todo. Nesse sentido, o exílio, o fragmento e a suspensão ganham potência na contradição: a especificidade se dá no "poder falar em forma múltipla", ainda que "dentro do olhar global" necessite do "reconhecimento de sua especificidade" (página 31). Neste ponto da obra, Milán reflete sobre as condições globais e como elas, de certo modo, impactam na coloquialidade adotada na poesia a partir das Vanguardas.

Livro Escrever sobre escrever poesia, de Eduardo Milán, caderno Bora escrever, do  Projeto Escrita Criativa, e canetas. Todos a postos para um momento de criatividade.


Então, ele aprofunda a ideia de vanguarda artística, da recusa, da mudança e da transformação social (e como a poesia abarca, abriga, se repagina e ajuda a repaginar o mundo). Literatura e sociedade caminhando de mãos dadas, recusando o sentido imposto, transmutando o dado numa garantia de humanidade frente o conceito de morte da arte da produtividade desenfreada. Poesia como forma de transgressão. Neste ponto entra o papel da crítica literária e de seus críticos que querem, cada um a seu modo, manter um status quo.

"A obra de um poeta não justifica nada. O erro não diz respeito aos poetas — na medida em que não podem ser valorizados pelo que não fazem —: a falha é responsabilidade de uma crítica corrupta que medra com seus instrumentos postos a serviço de uma ordem inamovível — inamovível porque as alternativas ao poder têm a mesma noção cultural que a ordem dominante —, uma crítica cuja degradação se tornou paradoxal: uma crítica que não é crítica. A situação não é a mesma em toda América Latina. No México é especialmente presente esse tipo de desgaste; não é assim na Argentina nem no Brasil, para dar exemplos claros do pensamento. (...) O que desarticula é ver a poesia latino-americana que se escreve desde algumas décadas circular sem valorização crítica e em mãos de um leitor que confunde uma escrita com outra porque já tinha confundido um pensamento com outro pensamento. Não é o acaso que definiu situações: há interesses — que na prática são desinteresses — pra que nada mude de lugar em termos culturais. Nossas culturas — e a poesia há muitos anos na América Latina entrou nesse jogo — herdam a eternidade, mas não se disctem o presente. As obras são escritas no presente e esperam — outra vez mesmo — ser julgadas pela eternidade". Eduardo Milán (páginas 71 e 72)

Após aprofundar o exílio, o fragmento e a suspensão, entram em cena a ausência e o esquecimento, a substituição e a emergência. De acordo com o autor, é assim que a poesia moderna se configura e que a contemporânea se compõe. Neste embate discute-se a quem pertence a palavra, como o leitor a ordena, como as retóricas se conversam (ou não). O leitor torna-se ponto de apoio fundamental para o entendimento da poética atual. Aparecem também a demanda exterior que leva o poeta em direção à linguagem, a desarticulação que leva a uma recaracterização da tensão dentro-fora, o controle social da linguagem e a repressão que também recai no campo poético, o como escrever a partir do que se sente e a escrita que vem a partir da criação do poema "do nada" — defendido pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari, com raiz marllameana — e como isso esbarra ainda na poética de Octavio Paz.

A obra traz ainda a análise da poética latino-americana sob a ótica de algumas produções como Trilce, de César Vallejo e de Residencia en la tierra, de Pablo Neruda e as "visões de quatro e o poema que não está", em que Milán foca em falar sobre os poemas "Blanco", "Advertencia al lector", "El desierto de Atacama", "Hospital Británico" e "El poema que no está", em que estes pontos previamente discutidos são vistos em prática.

Como pode-se notar, Escrever sobre escrever poesia é um excelente livro para poetas e estudantes de poesia brasileira e latino-americana, justamente por abrir portas para reflexões profundas e mais direcionadas à nossa realidade.

Capa.



Livro: Escrever sobre escrever poesia
Autor: Eduardo Milán
Tradução: Cláudia Dias Sampaio
Páginas: 204
Editora: Circuito
Coleção: Nomadismos
Apresentação: Eduardo Milán é um dos poetas e ensaístas mais criativos, sutis e influentes da América Latina. Um “raro”, como os que descrevia o nicaraguense Rubén Darío. Nasceu no Uruguai em 1952, numa cidade pequena chamada Rivera, separada por uma rua de outra cidadezinha: Santana do Livramento, no Brasil. Sua mãe, brasileira, morreu quando ele tinha dois anos. Dela herdou a primeira língua, e de sua própria e tenra orfandade a urgência de “escapar em direção a outras latitudes imaginárias”, a iniciação na poesia. Seu pai, uruguaio, foi perseguido pela ditadura que corroeu o país nos anos setenta. Desde o final dessa década (ou quase) Eduardo vive no México, no Distrito Federal. Disse a respeito: “O México me deu as palavras com as quais escrevo. Teria escrito o que escrevi fora do México? Seguramente não”.


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domingo, 20 de abril de 2025

{Resenha} Como encontrar seu estilo de escrever, de Francisco Castro

domingo, abril 20, 2025 12


O sexto volume da série Guias do Escritor, Como encontrar o seu estilo de escrever: as chaves para alcançar a expressão pessoal foi escrito por Francisco Castro. O espanhol é escritor e diretor de oficinas literárias, além de trabalhar com gestão e comunicação, sendo assim, ele traz toda a sua experiência para esta obra.

O livro é estruturado em 7 capítulos, em que seu autor defende e exemplifica aquilo que, para ele, é o principal componente de um bom livro: o estilo.

“Um texto bonito, um texto bem escrito, um texto bem trabalhado, e cuidado, e medido, e ponderado, com as palavras escolhidas a dedo, na quantidade certa (etc., etc.), será mais sedutor para quem lê (mais atraente, mais desejável) do que outro que foi escrito descuidadamente. O tema é o que menos importa. A sedução do texto reside no modo como é escrito.” (Francisco Castro, em Como encontrar seu estilo de escrever, página 18)

Por meio de exemplos de processos de escrita de escritores famosos, como o José Saramago, Castro toca em assuntos fundamentais, principalmente para quem está começando a estudar escrita literária, partindo do básico: o que diferencia um texto literário de um texto não literário, a diferença entre a realidade e a ficção de modo a trabalhar a verossimilhança, como mostrar no lugar de dizer, o que faz de um texto literário um texto bem executado, a importância da reescrita e da revisão.

Castro é categórico em alguns pontos: a literatura como beleza (e a importância da construção da grande metáfora), o estilo como ponto estrutural do romance e o fato de que um bom texto é produto de muitas reescritas. Como alguém que estuda e ensina escrita literária, penso que o modo como ele desenvolve o capítulo “Dizer e Mostrar” é muito didático. Muitos autores falam sobre isso – quem já fez cursos de escrita literária sabe o quanto esse assunto é recorrente –, mas Castro é muito claro tanto na explicação, quanto nos exemplos dados. Este é um grande diferencial da obra.

“Deixemos claro, portanto, que o estilo literário sedutor o é, em parte, pela força com que se saiba explorar as possibilidades imaginativas das metáforas. Eis uma coisa que você jamais deverá perder de vista na hora de escrever. Trabalhe com vigor as suas palavras para que delas nasça uma grande metáfora. Direi ainda mais: uma grande metáfora exata.” (Francisco Castro, em Como encontrar seu estilo de escrever, páginas 48 e 49)

E por falar em diferencial da obra, penso que os exercícios de escrita propostos nos três primeiros capítulos são de grande valia – mesmo sabendo que eles não terão um feedback do autor. As propostas são criativas, ao mesmo tempo em que colocam o leitor-escritor para refletir sobre a própria escrita. Esses exercícios são bacanas até para quem já tem familiaridade com oficinas e manuais de escrita literária. Além disso, todos os capítulos terminam com um resumo do que foi tratado. Isso também dá um panorama aos leitores.

Por fim, vale dizer que, apesar de ser um manual, um livro didático, a leitura é muito gostosa de ser feita. Como encontrar seu estilo de escrever pode ser lido em uma tarde e agrega reflexões necessárias a todo mundo que quer se profissionalizar na carreira de escritor.

“O exercício da revisão deve repetir-se todas as vezes que for necessário, e durante o tempo que for preciso. Isso é algo que você deve a si mesmo, na medida em que seja ambicioso na hora de escrever, e é algo que você deve ao leitor, a quem precisamos fazer entender o nosso texto e usufruir de um trabalho bem realizado.” (Francisco Castro, em Como encontrar seu estilo de escrever, página 73)



Livro: Como encontrar seu estilo literário: as chaves para alcançar a expressão pessoal
Título original: Cómo encontrar tu estilo literario
Autor: Francisco Castro
Tradução: Gabriel Perrisè
Páginas: 96
Editora: Gutenberg
Série: Guias do Escritor, volume 6
Apresentação/Sinopse: Encontrar seu estilo é algo que requer o desenvolvimento de uma linguagem literária para ter clareza de expressão a ponto de elaborar com perfeição o que você pretende contar. Este livro mostra a arte e o prazer de lapidar um texto para alcançar sua máxima qualidade. Com exercícios práticos e exemplos comentados que estimulam a criatividade, este guia irá entregar a você as chaves para sua expressão pessoal literária.




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domingo, 6 de abril de 2025

{Resenha} Crônicas de Travesseiro, de Pedro Tavares

domingo, abril 06, 2025 2

Crônicas de Travesseiro,
do escritor e roteirista Pedro Tavares, é um livro de crônicas que entrega aquilo que os leitores do gênero mais ama: aquela conversa trivial sobre os temas mais simples da vida – que, por vezes, revelam a complexidade por meio de uma sutileza própria. 

O livro, uma publicação independente, é dividido em três partes: “Introdução”, em que seu autor apresenta o que é o gênero crônica e o motivo que o levou a escrever um livro reunindo esse tipo de texto; “Crônicas de travesseiro”, maior parte da obra, em que vemos as crônicas no formato clássico, rubem braguiano, por assim dizer; e “Epílogo ou uma crônica maiorzinha” em que temos um belíssimo relato de viagem. 

Pedro Tavares é escritor premiado por seus outros livros e um cronista de mãos cheias. Ele é capaz de tocar desde temas mais comuns ao universo a crônica – como a viagem, a família e o futebol – até os mais inusitados como a asma e a hot yoga. Como um bom cronista, ele flana pelo mundo: do quarto onde dormia na infância, passando pela Avenida Paulista, cruzando o Atlântico. E de cada um desses passeios – sejam eles reais, virtuais ou memorialísticos – o autor dá um zoom in em um detalhe, tirando dele uma sacada que apenas o seu olhar de cronista é capaz de captar. 

Ao ler o Crônicas de Travesseiro, o leitor pode – assim como aconteceu comigo – se emocionar com as relações entre as pessoas ali relatadas, refletir sobre trivialidades não pensadas ainda e gargalhar com o inusitado. Sem dúvidas, essa é uma leitura leve, divertida e completa. 




Livro: Crônicas de Travesseiro 
Autor: Pedro Tavares 
Páginas:150 
Editora: edição do autor 
Apresentação: Esse é um livro de crônicas. Me perdoem, mas é. Aqui você vai encontrar alguns textos que realmente deveriam ter morrido em jornais velhos, embrulhando vasos quebrados ou protegendo o assoalho contra respingos de tinta. Você verá memórias já embaçadas pelo tempo, histórias com pouco fundo de verdade e argumentações furadas – algumas delas, diga-se, em que nem acredito mais ou talvez nunca tenha acreditado. Tomando a liberdade pra modificar um pouco as palavras daquele velho clássico, esse é o livro e, se gostarem, fico feliz. Caso gostem, não sei o que é um piparote, mas deixo um adeus mesmo assim. 

Compre o livro do Pedro entrando em contato diretamente com ele no @pedrotavares.


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domingo, 16 de março de 2025

{Resenha} Demerara, de Wagner G. Barreira

domingo, março 16, 2025 4


Misturando a realidade de seu antepassado, a história da chegada da gripe espanhola no Brasil e ficção, Wagner G. Barreira, tece uma trama envolvente para nos apresentar a vida de Bernardo, um espanhol nascido na Galícia, que passa boa parte da vida em Vigo, cidade onde vive de forma errática.

Órfão de pai e mãe, Bernardo foi deixado em um orfanato para ser padre. Ali, ele sofre todos os possíveis maus tratos e resolve seguir outro rumo que não o do sacerdócio. Nas ruas de Vigo, ele aprende o que é sexo, amor, bebidas, jogos, trapaças e contrabando, se tornando bem quisto por uns e odiado por outros. É em meio da desilusão com a vida que Bernardo recebe um chamado: embarcar no navio Demerara rumo a Buenos Aires. 

A princípio Bernardo resiste. Largar a vida para se apegar a uma promessa não parece algo que lhe faz sentido. Depois, com o desenrolar da trama, ele aceita o convite, cruza o Atlântico e acaba desembarcando no Brasil. Nada é como Vigo, nada é como a árvore que sempre lhe dera olivas. Ainda mais quando se traz na bagagem a doença estranha, que ninguém sabe bem como se trata. E isso é tudo para prender o leitor página a página, capítulo a capítulo.

O livro é estruturado em 18 capítulos ágeis em ações e com detalhes na medida certa. Wagner G. Barreira traz consigo o seu lado jornalista: os fatos são apresentados com clareza cristalina. Os diálogos são precisos. A prosa é arrojada. Meu eu leitora seguia página a página sem desgrudar do gancho literário que cada cena criou no meu imaginário: uma Santos sitiada, uma São Paulo em expansão. Conforme Laurentino Gomes nos aponta em seu prefácio, Wagner G. Barreira fez uma pesquisa intensa sobre o contexto histórico da obra, portanto as descrições são muito fiéis ao Brasil de 1918.

Assim como aconteceu com as nossas vidas durante a pandemia de COVID, a vida de Bernardo foi marcada pela gripe espanhola. Há uma identificação nossa com a desse sobrevivente que também teve medo, que também viu pessoas morrendo de perto. Essa carga da vivência emocional de Bernardo nos coloca em um lugar de refletirmos sobre a nossa própria vivência em tempos tão difíceis e em como recomeçar depois que as ondas das doenças se vão. Literatura e realidade em simbiose, mais uma vez.

capa


Livro: Demerara
Autor: Wagner G. Barreira
Prefácio: Laurentino Gomes
Gênero: Romance
Páginas: 152
Editora: Instante
Apresentação/Sinopse: O romance de estreia de Wagner G. Barreira conta a trajetória do jovem Bernardo, que embarca no navio que trouxe a gripe espanhola para o Brasil — e dá nome ao livro.
Bernardo nasceu na Galícia, no norte da Espanha. Ainda criança foi para um orfanato na cidade de Vigo, onde estudou e perdeu a chance de se tornar padre. Em 1918, dois anos após deixar a instituição, leva uma vida errante, vivendo de pequenos golpes ao redor do porto. Convencido por um amigo e precisando desaparecer por um tempo, embarca no vapor Demerara a caminho da América do Sul, na mesma viagem que trouxe a pandemia de gripe espanhola para o continente.
Mistura de ficção e eventos históricos, o livro de Wagner G. Barreira dá voz ao narrador personagem ao relatar a travessia do Atlântico, a acusação de ter assassinado o amigo, a prisão em Santos, a convivência com infectados pelo vírus, a fuga para São Paulo e as dificuldades de adaptação na cidade em construção pelas mãos de imigrantes de todo o mundo.
Demerara nasceu a partir de conjeturas sobre as origens do avô paterno de Barreira. De Bernardo, o protagonista e narrador, pouco se sabe de fato: era galego, chegou ao Brasil no navio Demerara e morreu no dia do batizado do único filho. Fora esses três fatos, tudo mais é ficção, tentativa de recriar a vida do antepassado a partir do ponto de vista do escritor, que fez uma abrangente pesquisa sobre os fatos históricos do período.

Livro no Skoob. | Livro no Goodreads.

Aperte o play para ver eu lendo o livro do Wagner e outras leituras mais:


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domingo, 23 de fevereiro de 2025

{Resenha} Um paraíso portátil, de Roger Robinson

domingo, fevereiro 23, 2025 4


Um livro de poesia que fisga o leitor pela potência das imagens apresentadas, imagens estas que nos fazem sentir as dores, as angústias, as influências e os momentos de gratidão presentes em cada verso. Em Um Paraíso Portátil, Roger Robinson traça uma ponte entre o passado e o presente da vivência negra experienciada por ele e por quem vive ao seu redor, em sua comunidade britânica.

Roger Robison é um artista multifacetado: poeta, músico, performer, cofundador de um coletivo de escritores, com a experiência farta de quem flana pelo mundo. Nascido na Inglaterra e atualmente vivendo em Londres, Robinson tem e honra a sua vida caribenha (viveu parte da infância e da adolescência em Trinidade e Tobago). Sendo assim, essa ponte que ele traça entre o passado e o presente é configurada de diversos modos, todos eles muito sensíveis, seja com o eu lírico do poeta assumindo a primeira pessoa, seja ele servindo de testemunha e se colocando no lugar das pessoas cuja a vivência é por ele observada. 

Poema "O vermelho escuro do seu sangue", de Roger Robinson, presente nas páginas 52 e 53 de Um Paraíso Portátil
(Clique na imagem para ampliá-la.)


A obra, vencedora do Prêmio T.S. Elliot (2019), é estruturada em 5 partes. A primeira é inteira dedicada à violência sofrida pela comunidade negra britânica durante o grave incêndio da Grenfell Tower (ocorrido em junho de 2017), que matou 72 pessoas. Aqui, o eu lírico mergulha no ocorrido, se colocando tanto no lugar de quem sucumbiu, quanto de quem sobreviveu e teve que lidar com o descaso da falta de resposta e de responsabilização dos culpados. A segunda parte segue trazendo o impacto da primeira e relacionando-a com a das pessoas que foram forçosamente levadas à Inglaterra na época da escravização. Ali passado e presente se cruzam quando o poeta empresta a sua voz aos anônimos e silenciados pela sociedade e pelo governo britânico. Além disso, mais uma vez, o poeta coloca o mal-estar na mesa, provando que, infelizmente, ele é universal ao se inspirar no caso do americano George Floyd e escrever um poema sobre a violência onipresente que é direcionada ao corpo negro. Os poemas da terceira parte resgatam as denúncias das anteriores para denunciar a postura dos que têm "outro" (não branco e não britânico) como "ilegal". O poeta faz uso da primeira pessoa (singular e plural) para apontar como os imigrantes sofrem abusos tendo como ponto de partida a exclusão social apenas por conta do espaço geográfico de origem, como se ter nascido em outro lugar que não a Inglaterra já fosse um atestado que permite que britânicos brancos sejam violentos com imigrantes negros e seus descendentes — ignorando completamente o histórico das relações coloniais e pós-coloniais. A quarta parte da obra reforça tudo isso trazendo referências sonoras e visuais ao livro, mostrando ao leitor uma riqueza de repertório que não é apenas do poeta, mas de toda comunidade a que ele pertence. Riqueza esta que é exposta e reiterada diversas vezes numa cidade que faz de tudo para ocultá-la. Por fim, a última parte traz a experiência de paternidade pessoal do poeta, cujo filho prematuro quase não sobrevive ao parto. Contrariando o estereótipo do homem negro que abandona os filhos, o eu poético não só é presente, mas também sofre o drama de ver o bebê lutando pela própria vida. A resistência negra mostrada nas outras partes da obra aqui se torna frágil e incerta, na figura do neném prematuro assombrado pela morte, ao mesmo tempo que é forte e ancestral, na imagem invocada da avó que aparece no último poema do livro e que, mais uma vez, reforça a imagem de passado e futuro que sustenta a voz de toda uma comunidade que segue (e que continuará seguindo) resistindo.

É interessante notar como Robinson trabalha todo o conteúdo apresentado acima fazendo uso tanto de estruturas mais formais, a exemplo do uso de dísticos (estrofes de dois versos) e tercetos (estrofes de três versos, como de outras formas mais contemporâneas como versos formatados em um único parágrafo. Esta é outro modo — agora na forma — de unir o passado (mais formal) e o presente (de versos branco, livres e mais pós-modernos). Isso traz ritmo não só a cada poema, mas também à leitura do conjunto da obra.

A versão brasileira do livro também conta com um texto de apresentação em prosa repleto de lírica e extremamente competente escrito por Prisca Agustoni. A orelha foi escrita por André Capilé. Já a tradução ficou por conta do Victor Pedrosa Paixão. A publicação foi feita em coedição das Editoras Incompleta e Jabuticaba.

Ler Um Paraíso Portátil é, ao mesmo tempo, dolorido e esperançoso. Dolorido porque nos deparamos de novo com as dores dos nossos irmãos. Esperançoso, justamente por nos dar um abraço que nos diz que o nosso paraíso não é feito só de luta e resistência, mas também do senso de irmandade que não se abandona.


Capa. (Fonte: Editora Incompleta)



Livro: Um paraíso portátil
Título original:
Autor: Roger Robinson
Tradução: Victor Pedrosa Paixão
Páginas: 103
Editora: Incompleta e Jabuticaba
Apresentação/Sinopse: Este livro – um desolado carrossel fantasmagórico de vidas penduradas por um fio, em busca de um lugar para chamar de ‘lar’ – faz do limiar entre o que é o ‘paraíso’ e o ‘inferno’ (e as representações cristalizadas que deles se construíram ao longo dos séculos) um ponto de partida para uma nova realidade”. As palavras de Prisca Agustoni na apresentação evidenciam, ao mesmo tempo, a estrutura de Um Paraíso Portátil e o seu centro: ao longo das cinco partes nas quais se distribuem, os poemas de Roger Robinson compõem um arranjo de vozes e formas diversas para expor as violências colonial e étnico-racial em suas mais variadas manifestações. Britânico de origem caribenha, o autor se vale da dub poetry; da citação de “vozes amigas” como Coltrane, Fela Kuti e Bob Marley; de trechos mais confessionais e prosaicos; de certa inspiração cinematográfica; de humor e de causticidade. Mas há algo além de que Robinson não se esquece nessa busca pela elaboração de lutos e traumas: um conselho de sua avó, em que o autor se agarra para seguir acenando rumo a alguma cura possível, um remédio coletivo ou particular. Publicado originalmente no Reino Unido em 2019 (Peepal Tree Press), A Portable Paradise venceu o T.S. Eliot Prize do mesmo ano. A obra chega ao Brasil numa coedição entre as editoras Incompleta e Jabuticaba, com tradução de Victor Pedrosa Paixão. Os escritores, pesquisadores e tradutores Prisca Agustoni e André Capilé assinam a apresentação e a orelha do livro.

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domingo, 2 de fevereiro de 2025

{Resenha} Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus

domingo, fevereiro 02, 2025 4


O dia a dia da favela e a luta por sobrevivência são os objetos de observação, vivência e registro de Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo: diário de uma favelada. O livro, escrito em formato de diário, registra desde os acontecimentos mais corriqueiros de sua autora, até fatos históricos (e como eles interferem na vida dos moradores da extinta favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo).

As entradas vão de 1955 a 1960 e apresentam com muita honestidade as mazelas e a solidariedade existente nesta região tão precária e periférica. Carolina, mãe de dois meninos (João e José Carlos) e de uma menina (Vera Eunice), se desdobra numa rotina pesada de catadora de papel, ferro e estopa, para alimentar a si e aos filhos — nem sempre com sucesso — e para criá-los da melhor maneira possível dentro de uma comunidade insalubre.

Fora de seu barraco de madeira e papelão há brigas por motivos torpes, fofoca, sexo e prostituição, violência entre adultos, contra mulheres e crianças, alcoolismo, meninos e meninas morrendo por causa da desnutrição. A autora, por vezes separa brigas, protege mulheres e crianças, vai atrás da polícia, se indigna com o tratamento que a vizinhança dirige aos filhos dela e aos dos outros e com a displicência dos políticos que aparecem na favela apenas em época de eleição.

Dentro do barraco há a falta de estrutura (água encanada, esgoto, energia elétrica), de comida, de roupas e calçados, de itens de higiene e limpeza. Sobram apenas as pulgas e a falta de privacidade, ainda que Carolina prezasse muito por se separar de todo o caos.

Embora a rotina seja muito similar todos os dias — acordar, pegar água, fazer café, alimentar os filhos, catar papel, escrever —, é justamente nas pequenas nuances que Quarto de Despejo ganha forma e força: seja na reflexão de sua autora sobre o governo, seja na lupa que ela coloca na favela ao apresentar os dias sem comida, o diálogo com os vizinhos, a generosidade na partilha do pouco, a gangorra entre desespero e esperança em dias melhores.

Como professora de escrita literária, me encontro com muitas mulheres que têm medo de dizer que são escritoras — a insegurança de uma possível falta de perfeição textual está sempre à espreita. Ver como a Carolina Maria de Jesus se vê como escritora desde sempre e como a comunidade a reconhece como tal, apesar das adversidades vivas por todos é acalentador e exemplo. As pessoas ao seu redor a viam como escritora, porque ela sempre se apresentou assim. E muitas delas tinham medo de ter seus nomes divulgados no diário, a exemplo do pai de Vera Eunice que, mesmo atrasando a pensão da filha, teve o pedido atendido.

Como uma criança que cresceu entre o fim dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990, ouvi muito do registrado na obra: o medo infantil de não ser uma criança comportada e ir parar no Juizado (de Menores); o medo do adulto negro e periférico de andar sem documento e ser tido como vagabundo, bandido; a necessidade do negro estar sempre extremamente arrumado para não ser desrespeitado gratuitamente; a morte por desnutrição; a truculência policial (que muitas vezes escolhe o tratamento dado às pessoas de acordo com o bairro em que ela está ou reside*).

Algumas dessas coisas perduram até hoje, o que só reforça que mais do que um simples diário, Quarto de Despejo é um retrato fiel do Brasil.

capa.


Livro: Quarto de Despejo: diário de uma favelada
Autora: Carolina Maria de Jesus
Editora: Ática
Páginas: 200
Apresentação/sinopse: O diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus deu origem à este livro, que relata o cotidiano triste e cruel da vida na favela. A linguagem simples, mas contundente, comove o leitor pelo realismo e pelo olhar sensível na hora de contar o que viu, viveu e sentiu nos anos em que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo, com três filhos.

*Leia reportagem sobre isso, aqui e aqui.
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domingo, 19 de janeiro de 2025

{Resenha} Canção para ninar menino grande, de Conceição Evaristo

domingo, janeiro 19, 2025 6



Canção para ninar menino grande, de Conceição Evaristo, é um livro que contém muitas camadas, aquela leitura que a cada vez que a revisitamos descobrimos mais e mais coisas tanto sobre as personagens, quanto sobre nós mesmos.

A obra nos apresenta a história de Fio Jasmim, um homem negro, que trabalha em uma ferrovia, e de todas as mulheres que passaram por sua vida: desde a oficial — com quem casou e teve os ditos “filhos oficiais” — a todas as outras que conheceu em suas viagens a trabalho.

Dito assim, pode parecer que Fio Jasmim é apenas mais um homem qualquer; mas, ao adentrarmos na narrativa, a autora nos leva a refletir sobre o racismo estrutural, sobre a masculinidade frágil, sobre a coragem e determinação de algumas dessas mulheres e sobre a pressão sofrida por todas elas, a que algumas sucumbiram. Tudo isso, narrado a partir de uma força poética que já é tão característica da literatura de Evaristo.

A obra coloca uma lente na masculinidade tóxica vivida por homens em geral e mais ainda, na que é vivida pelos homens negros. Homens estes que são cobrados de uma virilidade sempre pronta, em riste e forte, e sem o direito a sensibilidade alguma. Ao ler o livro de Conceição Evaristo, observamos o outro lado, o efeito — muitas vezes geracional, já que Jasmim aprendeu o que sabia com os homens mais velhos que o rodeiam — do estereótipo do malandro aproveitador que é tido como uma máquina de obter e dar prazer e que abandona uma mulher grávida a cada estação por onde passa.

O legado, como dito e muito bem-marcado pela autora, é geracional: assim como há os efeitos do estereótipo do homem negro, há também uma lente para a mulher negra — seja ela tida como “de família” ou “da vida” — qual é o espaço que essa mulher ocupa na sociedade? Se jovem e bonita tem seu corpo sexualizado; se mais velha ou mãe, muitas vezes assume o lugar de “lutadora que cria os filhos sozinha”, geração após geração.

No livro, Conceição Evaristo maneja não só (um dos muitos modos de) ser negro no Brasil, mas também como essa relação de homem que sempre é forte, conquistador e viril impacta diretamente na vida das mulheres e dos filhos que elas eventualmente têm. De como, para o homem ser o garanhão é um sinônimo de virtude; quanto para as diferentes mulheres (negras ou não), estar como alguém como Fio Jasmim é cair em desgraça.

Por meio das mulheres que amaram Fio Jasmim; nós, leitores, passamos a compreender a ferida estrutural da nossa sociedade, que descende — em grandíssima parte — de pessoas como ele e seus amores. Conceição Evaristo, por meio de sua escrevivência, coloca o dedo na ferida e brada um “precisamos falar, sim, sobre isso, sim”, afinal, ainda hoje dados estatísticos comprovam que o número de mães que criam seus filhos sozinhas no Brasil ainda é alto*.

Há um vazio existencial enorme para praticamente todos os personagens do livro. O vazio provocado pela estrutura social que educa pela lente do racismo (há príncipes negros na escola?) e do machismo desde a infância e que a objetificação dos corpos não consegue preencher. Homens como Fio Jasmim têm que se provar o suficiente o tempo todo, para que se sinta existente e aceito na sociedade — mesmo que ele nem esteja com tanta vontade assim de sexo (como sair da cidade sem ter transado como alguém?).

O corpo como moeda de troca para preenchimento de um vazio. O vazio causado por uma sociedade egocêntrica que não questiona o sentimento alheio. O poder de decisão, de resignação, de curiosidade, de pulsão de vida e morte. A história dos nossos e das nossas ancestrais. Questionamentos. Poder de estagnação e igualmente, de mudança. É possível encontrar tudo isso em Canção para ninar menino grande, de Conceição Evaristo. Que sorte a nossa, ter uma autora como ela no nosso cânone. Que sorte a nossa!

Capa (divulgação da editora).



Livro: Canção para ninar menino grande
Autora: Conceição Evaristo
Editora: Pallas
Páginas: 136
Apresentação/sinopse: Trata-se de um mosaico afetuoso de experiências negras, um canto amoroso e dolorido. Na figura do personagem Fio Jasmim, Conceição discute com maestria as contradições e complexidades em torno da masculinidade de homens negros e os efeitos nas relações com as mulheres negras. O livro é um mergulho na poética da escrevivência e ao mesmo tempo um tributo ao amor sob uma ótica poucas vezes vista na literatura brasileira.

*Segundo reportagem da Agência Brasil (leia aqui), em 2022, havia mais de 11 milhões de mães solo no Brasil. 
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domingo, 8 de dezembro de 2024

{Resenha} O ato criativo: uma forma de ser, de Rick Rubin

domingo, dezembro 08, 2024 4


Quando a editora Sextante lançou O ato criativo: uma forma de ser, de Rick Rubin, a internet não falava em outra coisa. Eu não sou muito de ler os livros que estão no hype, mas aproveitei uma visita à livraria Martins Fontes para comprar um exemplar e ver se era tudo isso que todo mundo andava dizendo.

O livro é bom, sem dúvida. Penso que é uma excelente porta de entrada para quem nunca leu nada sobre viver uma vida autoral e criativa. Também acredito que pode inspirar quem se vê em uma fase mais dura, de bloqueio criativo. Entretanto, se você for um leitor como eu, que já leu dezenas de livros sobre criatividade e que vê na arte uma forma de devoção, talvez este livro seja mais do mesmo. Embora Rubin seja muito didático e objetivo, ele não me trouxe nenhum conhecimento novo sobre o assunto. Em algumas passagens, inclusive, achei que há outros autores que apresentam determinados pontos de vista de formas melhores do que as dele.

Quando você segura uma peça central do quebra-cabeça e fita a mesa vazia, é difícil saber onde colocá-la. Se o quebra-cabeça estiver completo exceto por essa única peça, você saberá exatamente qual é o lugar reservado a ela. Em geral, o mesmo acontece com a arte. Quanto mais da obra pudermos conhecer, mais fácil será localizar com elegância e clareza os detalhes finais. (Rick Rubin, O ato criativo, página 127)
Início do capítulo sobre sucesso. Página 160, de O ato criativo, de Rick Rubin

Rubin é um produtor musical de sucesso e traz a sua experiência para o livro. Por mais que ele tente falar de outras áreas artísticas (como a escrita, a fotografia etc.), ele ainda se prende mais ao ramo dele de trabalho. Tanto nesse sentido mais prático, quanto no sentido mais espiritual a que ele se refere da criatividade, penso que os livros da Julia Cameron (também publicados no Brasil pela editora Sextante) aprofundam mais esses pontos.

Entre em sintonia com esses sentimentos durante o trabalho criativo. Procure as reações internas. De todas as experiências que surgem no decorrer do processo, tocar o êxtase e permitir que ele guie nossas mãos é a mais profunda e preciosa de todas elas. (Rick Rubin, O ato criativo, página 169)

Talvez esta sensação que senti de falta de aprofundamento de alguns pontos seja fruto da tentativa de cobrir os assuntos mais importantes da vida criativa. Quando olha-se o "Sumário", tem-se uma ideia dos assuntos abordados em cada um dos capítulos que vão desde entrar em sintonia com a fonte, passando por plantar e colher frutos da semente criativa. Ele ainda passa por pontos como o olhar para dentro e o subconsciente, a importância da paciência, o equilíbrio entre o romper com a mesmice, a espontaneidade, ter regras e ser constante, o não competir, o trabalho em equipe, a adaptação, a sinceridade, a harmonia, dentre outros. Entendo que se ele resolvesse aprofundar de fato cada um desses pontos, o livro seria imenso.

Sumário de O ato criativo, de Rick Rubin.

Todas as coisas vivas estão interconectadas e dependem umas das outras para sobreviver. A obra de arte não é diferente. Ela gera entusiasmo em você. Exige sua atenção. E sua atenção é exatamente o necessário para que ela cresça. É uma relação harmônica de dependência mútua. O criador e a criação recorrem um ao outro para prosperar. A vocação do artista é seguir o entusiasmo. Onde há entusiasmo há energia. E onde há energia há luz. (Rick Rubin, O ato criativo, páginas 245-246)

Como disse no princípio, não é um livro ruim, apenas não me entregou toda a expectativa que o buzz da internet criou antes da minha leitura. Se você nunca leu nada sobre criatividade ou quer relembrar algo sobre o assunto, este O ato criativo pode ser um bom ponto de partida.

Capa.


Livro: O ato criativo: uma forma de ser
Título original: The creative act: a way of being
Autor: Rick Rubin
Tradução: Beatriz Medina
Editora: Sextante
Páginas: 288
Apresentação/Sinopse: O lendário produtor musical Rick Rubin é um mestre em ajudar artistas dos mais variados gêneros a se conectarem com a fonte de sua criatividade para descobrir quem são de verdade e o que de melhor têm a oferecer ao mundo.
Ao longo de anos estimulando as pessoas a transcenderem suas limitações e resgatarem esse estado puro de inocência e inspiração dentro de si, Rubin compreendeu que ser artista não tem a ver com criar obras de arte; tem a ver, sim, com uma maneira peculiar de estar no mundo e de se relacionar com ele.
Este livro é uma generosa reflexão que ilumina o caminho do artista e nos convida a seguir por essa estrada – pois a arte e a criatividade estão à disposição de cada um de nós, como um direito de nascença.
“Não importa se estamos produzindo arte formal ou não; todos nós vivemos como artistas. Pelo mero fato de estarmos vivos já podemos nos considerar participantes ativos do processo contínuo de criação. Viver como artista é um modo de estar no mundo. É uma prática de atenção.” – Rick Rubin

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domingo, 2 de junho de 2024

{Resenha} Clarice Lispector: pinturas, de Carlos Mendes de Sousa

domingo, junho 02, 2024 6


Descobri este livro por um acaso e foi amor à primeira vista: não só por se tratar de um estudo sobre a obra clariciana, mas também por se ocupar dessa obra por uma outra via, a das pinturas de Clarice Lispector.

Clarice não se considerava pintora, e a quarta capa do livro traz uma citação em que ela explicita isso. Entretanto, Clarice também não se designava escritora, apenas alguém que gostava de escrever, e aqui estamos, um século depois, lendo seus livros, transformando suas narrativas em filmes, sentindo sua obra nas nossas entranhas. 

O que você encontra neste livro.


A relação da não pintora com as artes é longa e duradoura. Nesse sentido, o trabalho de Carlos Mendes de Sousa é muito bom: antes de apresentar e de analisar as pinturas de Clarice, ele nos faz adentrar no universo das arts plásticas pela perspectiva da autora. Clarice Lispector: pinturas é dividido em duas partes: "I. O quadros de Clarice" e "II. Clarice pintora". 

Em "Os quadros de Clarice", os capítulos nos falam sobre a relação da escritora com as artes plásicas. Há uma pesquisa profunda, e os capítulos abordam várias perspecitavas, passeando sobre múltiplos assuntos: os livros que ela tinha em sua biblioteca pessoal sobre o tema, os pintores com quem ela tinha amizade ou a quem entrevistou, os quadros que ela tinha em casa, os retratos que foram feitos dela, os artistas que tentaram retratá-la e não conseguiram. Tudo isso embasado em textos (trechos dos romances, das crônicas, de entrevistas, dos contos e de declarações) da autora. 

Já a parte "Clarice pintora" analisa cada quadro propriamente dito feito por Clarice Lispector e nos mostra o quanto sua pintura está atravessada por sua literatura (e vice-versa). Figuras como o ovo e o cavalo são presentes em ambas. Além disso, a eterna procura por entender seu lugar no mundo, de expressar o não lugar, o que não se pode ser dito, o estranhamento artístico filosófico, o místico, tudo isso também está presente em suas pinturas.

Os capítulos trazem tanto as pinturas de Clarice quanto de outros artistas que são referenciados ao longo da obra em imagens coloridas, o que dá ao leitor mais aproximação devido à riqueza de detalhes nas imagens. Os capítulos são curtos e bem-escritos. Apesar de o livro ser fruto de uma tese de doutorado, a linguaguem está longe de ser enfadonha e cheia de academicismos. Isso contribui para uma leitura que é gostosa de ser feita, à medida que ela nos provoca, enquanto leitores, a querer saber mais. Além disso, Carlos Mendes de Sousa foi muito sábio em cada citação que escolheu para ilustrar e embasar o que dizia. A curadoria, sem dúvida, nos trouxe os melhores trechos de Clarice que se relacionam com as artes plásticas. 

O que eu vejo como um ponto alto deste livro é que ele é excelente tanto para quem já é estudioso de Clarice Lispector, quanto para quem apenas tem curiosidade sobre a autora ou para quem gosta ou se interessa por pinturas em geral. Como escritora, acho interessante como Sousa traça a ligação não apenas entre a produção literária e artística da autora, mas também como as influências das artes plásticas penetram no reino das palavras e das entrelinhas claricianas. É bonito como o processo de criação se revela nos dois âmbitos. Ler Clarice Lispector: pinturas nos estimula não só a querer mergulhar ainda mais no universo clariciano; mas, e por que não dizer, a querer produzir arte também.

Capa.


Livro: Clarice Lispector: pinturas
Autor: Carlos Mendes de Sousa
Páginas: 272
Editora: Rocco
Sinopse: Mais uma faceta pouco conhecida da escritora Clarice Lispector vem a público nesta obra, do português Carlos Mendes de Sousa. Grande admiradora das artes, Clarice tinha especial interesse pela pintura, conviveu com diversos artistas e produziu suas próprias pinceladas, cerca de 20 delas reproduzidas no livro. 'A atmosfera pictórica contamina a escrita de Clarice Lispector em aspectos mais ou menos visíveis', afirma Sousa, que reflete sobre a obra da escritora à luz de sua relação com a pintura.
Sobre o autor: Carlos Mendes de Sousa é um dos grandes nomes da crítica literária portuguesa. Natural de Angola, é professor de literatura brasileira na universidade do Minho, em Portugal. Sua dedcação à obra de Clarice Lispector, tema de sua tese de doutorado, deu origem ao volume Clarice Lispector. Figuras da escrita (IMS, 2012), livro de referência para os estudos claricianos.

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