domingo, 3 de fevereiro de 2019

{Resenha} Carta a D.: História de um amor, por André Gorz

Carta a D., livro de André Gorz.

A precisão das lembranças que eu guardo me diz a que ponto eu a amava, a que ponto nós nos amávamos. (página 26)

Carta a D. é uma declaração de amor de André Gorz a sua querida Dorine. O livro, escrito em 2006 pelo filósofo e jornalista, foi o modo de registrar uma vida inteira de companheirismo e produção intelectual compartilhada. 

"Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro". (página 15)

Dorine sofria de uma doença degenerativa incurável e mesmo assim foi parte importante na vida de André. Por isso, ele começa a obra se retratando, desmentindo a fragilidade aparente com que sempre tratou a esposa diante da sociedade francesa do pós-guerra. Dorine, que sempre o ajudava a criar seus textos, nunca havia recebido os devidos créditos por isso. Carta a D. não deixa de ser, portanto, um pedido declarado e oficial de desculpas.

André Gorz e Dorine Keir, em 1985. | Foto: Cédric Philibert. 

Gorz acaba escrevendo uma autoanálise de sua vida enquanto rememora os momentos importantes desta jornada que viveu ao lado de sua amada. É interessante para o leitor observar como o escritor percebe as mudanças que a relação amorosa lhe proporcionou. Como o escritor nasceu em Viena, Áustria, e tinha origem judaica (em um panorama de guerra/pós-guerra), ter uma identidade não era algo herdado e radicado em um único local. Para ele, a construção da própria identidade se deu com o tempo, e a contribuição de Dorine foi fundamental para este processo. Essas nuances, perceptíveis ora de modo sutil, ora de modo escancarado, fazem com que o leitor se aproxime da narrativa, se tornando quase que um amigo íntimo do casal.

"Com você, eu estava em outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo. Você me dava acesso a uma dimensão de alteridade suplementar — a mim, que sempre rejeitei toda identidade e juntei uma identidade na outra, sem que nenhuma fosse realmente a minha. Falando com você em inglês, eu fazia minha a sua língua. Até hoje continuo a me dirigir a você em inglês, mesmo quando você responde em francês". (página 16)

O processo de criar e refletir do escritor sempre esteve atrelado às conversas que ele teve com sua companheira de vida. Além de ajudá-lo a organizar o pensamento político-filosófico, Dorine era grande apoiadora na elaboração das obras de Gorz. Sempre que ele se questionava se deveria continuar trabalhando em algum texto, ela lhe respondia com um "sem dúvida", mesmo que isso custasse a ela noites sem o autor  que se dedicava ao seu trabalho. Neste ponto, a carta torna-se também um olhar para os dilemas vividos por quem se dedica à profissão do escritor.

"O principal objetivo do escritor não é o que ele escreve. Sua necessidade primeira é escrever. Escrever, isto é, ausentar-se do mundo e de si mesmo para, eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias. É apenas num segundo momento que se põe a questão do "tema" a ser tratado. O tema é a condição necessária, necessariamente contingente da produção de escritos. Não importa qual tema é o melhor, desde que ele permita escrever". (páginas 41 e 42)

Como notado no trecho acima, às vezes a carta ganha um tom que flerta com outros gêneros textuais, como o jornalístico e o ensaístico, mas mesmo assim, ela não perde o tom intimista que o casal tinha.

Apesar da adoração que Gorz sente por Dorine, o livro torna-se lindo justamente porque ele é um retrato de uma relação real. As crises se alternam com momentos felizes. As dificuldades vividas pelos dois se mostram tão presentes quanto os momentos de glória. Assim, o leitor percebe também como funciona a dinâmica de um relacionamento tão duradouro: hoje, em tempos de relacionamentos que se esvaem, Gorz e Dorine exemplificam a importância de não se desistir tão facilmente.

Falando do objeto-livro em si, esta obra foi escrita em 2006 e publicada pela primeira vez no Brasil em 2008, pela Cosac Naify. Em 2017, ganhou uma versão definitiva, publicada pela Companhia das Letras (que foi lida por mim e aparece nas fotos deste post). Edição esta, que tem todo um cuidado de apresentação: o livro vem dentro de uma capa-caixa em formato de envelope, que dá ao design uma dimensão tão especial quanto o amor de Dorine e Gorz. O livro também conta com notas de rodapé que são essenciais para entender acontecimentos do contexto históricos e frases-chaves que, eventualmente, não foram traduzidas no texto corrido. O leitor tem a chance de aproveitar o momento agradável da leitura sensorial e assim se sentir ainda mais atraído pelo conteúdo ali escrito.

Gorz e Dorine | Foto de Daniel Mordziski – Editora Galillée

André Gorz e Dorine tiraram a própria vida juntos, um ano depois da publicação de Carta a D.

"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz quarenta e cinco anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher". (página 101)

Livro: Carta a D.:História de um amor
Título original: Lettre à D.: Histoire d'un amour
Autor: André Gorz
Tradução: Celso Azzan Jr.
Capa: Violaine Cadinot
Páginas: 104
Editora: Companhia das Letras
Sinopse/Apresentação: “Você está para fazer 82 anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que 45 quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz 58 anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca.” Assim André Gorz inicia sua carta de amor a Dorine, mulher ao lado de quem ele passou a vida e que há alguns anos sofria de uma doença degenerativa incurável. Como um dos principais filósofos do pós-guerra francês, Gorz escreveu inúmeros livros influentes, mas nenhuma de suas obras será tão amplamente lida e lembrada quanto esta carta simples e bela, em que ele rememora tanto a história de companheirismo, amor e militância do casal como a trajetória intelectual que percorreram juntos. Um ano após a publicação de Carta a D., um bilhete encontrado na casa onde moravam fez as vezes de pós-escrito à narrativa: André e Dorine tiraram a própria vida juntos, numa renúncia comovente a viver sozinhos.

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6 comentários:

  1. Caramba, não conheço o casal, então a última frase da resenha me pegou muito de surpresa. O livro me parece uma análise sincera, apaixonada e grata sobre ela e a relação dos dois, deve ser lindo ler algo assim desse jeito intimista e real. Adorei a resenha!

    Um beijão,
    GABS | likegabs.blogspot.com

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    Respostas
    1. Oi, Gabs!
      Acho que você captou bem a essência do livro. É justamente por tudo isso que a leitura flui de um modo gostoso. :)

      Um beijo :*

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  2. Eu amei a resenha do livro, gosto de livros assim de romance.

    http://www.dosedeestrela.com.br/

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  3. Que história linda e emocionante.
    Bom restante de semana!

    Jovem Jornalista
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    O blog está em HIATUS DE VERÃO até o dia 23 de fevereiro, mas tem post novo. Comentarei nos blog amigos nesse período.

    Até mais, Emerson Garcia

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