segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Cataclismo

Imagem: PublicCo.
As ondas enfim cessaram. Assim pude ver o que sobrou do vilarejo. Apesar da bagunça, apesar da dor, apesar do desespero, havia algo de belo: a esperança que surgia cada vez que alguém era resgatado, cada vez que uma mãe abraçava a criança viva que já dava por sem alma, cada vez que uma foto ou documento era encontrado atestando que ali já foi um lugar comum um dia.

Sentei-me sobre a pedra mais alta da montanha mais alta - e que mesmo assim não tinha altitude o suficiente para deixar os meus pés secos quando o mar ficava revolto. Dali tinha a visão das pessoas , pequeninas por causa da distância, tentando reconstruir suas próprias vidas. Via-as remontando a cidade, tomando nas mãos cada tijolo como pecinhas de lego. A humanidade é tão insignificante quando se tem as profundezas como deusas.

Voltei-me às águas. Cristalinas, quase silenciosas, elas seguiam com seus moluscos e peixes e tartarugas e tubarões e baleias. O que será que acontece com essa bicharada toda, enquanto os homens se apavoram ao verem a grande onda se aproximando da orla? Não há ciência que explique o desespero de um tsunami, mas há cientista que diga para onde a baleia ruma com seu filhote ao sentir o efeito de um terremoto marítimo? Ou não há baleias sob o azul-esverdeado banhador da encosta da montanha que gentilmente me pega no colo e me toma como filho?

Falava sobre esperanças e filhotes, mas isso não significa que antes da destruição sentia coisas boas. Aliás, era justamente o caos do abandono - dos outros e de mim mesmo - que, antes do tsunami, me anulou qualquer forma de sentir. A calma, esta criança marota, só veio depois dele. Ela chegou de mãos dadas com a minha sobrevivência. A plenitude que me habita é fruto, sem dúvida alguma, do possessão entre o caos e a fúria. 

Observei os que sofrem com a compaixão de quem sabe que agora eles compreendem a minha existência. Foi assim que o mar levou a angústia. Foi assim que renasci.

O tema da blogagem coletiva de janeiro de 2019 é: que o mar leve.
Para saber mais sobre o Projeto Escrita Criativa, clique aqui.

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19 comentários:

  1. Belo texto sobre redenção. Gostei bastante.
    Bom restante de semana!

    Jovem Jornalista
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    O blog está em HIATUS DE VERÃO até o dia 23 de fevereiro, mas comentarei nos blog amigos nesse período.

    Até mais, Emerson Garcia

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    1. Oi, Emerson!
      Obrigada pelo elogio ao meu texto. Boas férias!

      :*

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  2. Que texto lindo, Fê!! Tem dias que é muito importante deixar que o mar leve todas as nossas angústias e inquietudes!! Vale a pena!!

    Beijinhos

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    1. Oi, Fê!
      Acho que sim. Isso tem que ser um lembrete de vida pra gente.

      Beijos!

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  3. Que texto mais bonito e cheio de significado Fer! Ao lê-lo me senti sentada sobre a pedra mais alta da montanha mais alta e observando, por alguns minutos tomei para mim o sentimento daquele que narra sua experiência.

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    1. Oi, Ane!
      Fico feliz que o meu texto tenha te despertado tantos sentimentos. No fim, o papel da literatura é esse: gerar a empatia e a reflexão.

      Um beijo e obrigada pelo feedback.

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  4. uau que texto mais lindo! acho que td mundo já se sentiu assim e precisamos deixar o barco correr muitas vezes

    www.tofucolorido.com.br
    www.facebook.com/blogtofucolorido

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    1. Fico feliz pela identificação com o texto!
      Obrigada por comentar :)

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  5. Hey Fê! Tudo bem?
    Adorei o seu texto, depois da tempestade a calmaria, e suas palavras retratam isso cuidadosamente.
    Obrigada por comentar lá no blog.
    Volte sempre!

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    1. Fico feliz demais por você ter gostado! :D
      Eu que agradeço por você sempre voltar aqui.

      Um beijo :*

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  6. Ai que texto lindo! O final então... Me emocionou!
    O mar acaba levando muitas coisas quando permitimos né?
    Parabéns!!
    Beijos
    www.somosvisiveiseinfinitos.com.br

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    1. A beleza é justamente esta: se permitir ser levada!

      Um beijo :)

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  7. Que texto mais lindo! É incrível como, ás vezes, precisamos passar por coisas ruins (como no caso do texto, um tsunami) para renascermos de uma forma única. Amei a reflexão!

    xoxo,
    GABS | likegabs.blogspot.com

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    1. A vida é uma alternância entre calmarias e tsunamis, não é mesmo?

      Um beijo!

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  8. Que escrita leve e gostosa de ler.
    Adorei!

    Ótimo final de semana
    http://estante-porcelana.blogspot.com

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  9. Oi Fe,
    Como sempre, certeira com as palavras!

    Que texto bonito e imersivo... enquanto lia, pude observar e sentir com o narrador essa transformação do renascimento.

    Um beijo,
    Aline

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    1. Oi, Aline!
      Obrigada pelas palavras de carinho e por acompanhar a minha literatura!

      Um beijo :*

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  10. Interessante esse projeto.
    Cheguei aqui através de um comentário no blog https://poemasdecharlesbukowski.blogspot.com/ e gostei bastante.

    De um tempo pra cá, tenho escrito várias coisas. Tudo de forma simples e sem as tais "regras" da escrita.
    Quem sabe um dia, eu venha participar com um de meus textos.
    Mas preciso dar uma "melhorada" antes.

    grande abraço

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