sexta-feira, 10 de agosto de 2018

BEDA agosto/2018 #10 — Pequenas Reflexões sobre a Criatividade (Uma dicotomia entre o ser e o se declarar criativo)

Você é criativo publicamente ou só às escondidas?
Sempre que eu digo que sou professora e escritora, as pessoas tendem a responder com entusiasmo: “te acho muito criativa!”. Confesso que a admiração exacerbada me faz rir por dentro, de forma muito zombeteira. Eu, criativa? Isso é motivo de piada ou de terapia.

O fato é que a recorrência neste assunto me fez querer entender o que as pessoas veem que eu não vejo, o que as levam a me ver como um ser criativo e a elas não. Recorri, então, ao meu método empírico-preferido de estudo: a observação pessoal-livresca.

Comecei uma saga de leituras, descobertas e ressignificação. Descobri que criatividade não é genialidade, que bloqueio criativo é algo relativo, que o ser criativo é passível de ser confundido com organização para a execução de múltiplas atividades e que – aí vem a constatação mais dolorida de todas – a escola mata a criatividade. Mas vamos por partes.

A palavra criatividade tem a mesma origem latina da palavra criança. Pode parecer curioso, mas vejo que talvez aí esteja a dicotomia de amor e ódio entre o ser criativo e o se declarar criativo, entre o tal do pensar fora da caixa e seguir todas as regras. Se olharmos bem para o estereótipo do artista (há alguém mais criativo que um artista?) e analisarmos de perto o que as pessoas definem comumente como o que é ser criança, as mesmas descrições vêm à tona: ambos veem o mundo com olhar de descoberta, quebram as regras em muitos momentos e, sobretudo, procuram o prazer e a diversão. Um google rápido nas imagens também demonstra o que as pessoas visualizam sobre os dois termos: muitas cores e sorrisos caminhando juntos.

Embora eu não seja psicóloga – e estas palavras sejam apenas algumas conjecturas minhas – pressinto que a ideia da felicidade livre, sem qualquer tipo de limite, é associada em nosso inconsciente coletivo tanto às crianças quanto à criatividade. Quem cria é livre e, assim como a criança, precisa de um “norte” para ser levado a sério.

Quando as habilidades de vida passaram a ganhar tanto espaço e importância quanto a carreira acadêmica na busca por um lugar ao sol, a procura pelo ser criativo virou um dos critérios de seleção natural no mercado de trabalho. Por consequência, isso acabou se estendendo ao ambiente escolar. Passou-se a exigir que os professores preparassem desde cedo pessoas que “pensem fora da caixa”. Os contratantes passaram a trazer cada vez mais este tema à tona, de uma maneira a princípio contagiante e, depois, exaustiva. Todo esse interesse e a necessidade crescente me fazem pensar: será mesmo que essa pressão vira prática?

Aqui passo para o outro lado da moeda: os adultos fugindo do ser criança. Se nos voltarmos para as expressões populares, veremos o medo, o receio e – por que não dizer – a vergonha do lado infantil que todos carregam dentro de si (em maior ou menor grau). A língua faz um registo claro disso quando alguém usa as palavras ou expressões “criancice”, “Fulano foi infantil”, “Para que tanta infantilidade?!”, de forma pejorativa. Como alguém pode querer mostrar o lado livre, quando se corre o risco de ser tachado como imaturo?

Seres criativos normalmente quebram regras. Não porque eles sejam desertores birrentos, mas porque carregam dentro de si o gosto pela experimentação. É como se eles nunca desligassem o “e se...” e se jogassem em uma empreitada investigativa. É justamente por causa desse “e se...” que a humanidade avançou até 2017 sem depender de abrigos em cavernas e caça em meio da floresta. É o “e se...” que nos move enquanto espécie.

Ver o mundo com os outros olhos – outro clichê relativo a este assunto – fez com que pessoas descobrissem como voar, se transportar, conservar alimentos, combinar novas palavras, ângulos, texturas, sabores, ferramentas, elementos, ideias. Ser criativo relaciona-se com o que é amplo e que é o mínimo, com as tentativas e os erros de quem não quis e nem pretende fazer tudo sempre do mesmo jeito.
A escola – e o trabalho, por consequência – muitas vezes nos leva a agir e pensar da mesma forma todos os dias. A rotina faz isso com as pessoas. Mais uma vez lembro que não escrevo estas palavras com o respaldo do embasamento científico, ainda assim, o meu olhar – criativo? – me faz perceber o abismo entre a formalidade do dia a dia regrado no colégio e todas as minhas vivências errantes no campo literário.

Como professora, a rotina faz parte do meu trabalho – o que inclui a batalha contra o relógio. Como abordar todos os conteúdos previstos, dentro do tempo escasso e ainda deixar que os meus alunos tenham momentos de devaneios? Como permitir que eles testem diferentes hipóteses em apenas alguns minutos? Debates? Criações? Experiências. Uma enxurrada de possibilidades prazerosas – como as brincadeiras ou, usando um termo pedagógico, de aprendizados de forma lúdicas – que fazem as crianças saírem da sala, da rotina, do controle, da tal caixa. Há uma forma prática de combinar tudo isso sem prejuízo para o aprendizado? A imaginação ganha asas e – dependo do contexto e da forma que isso se dá – o professor ganha estresse.

Saí do curso de licenciatura com milhões de pesquisas. Queria ser a professora revolucionária que chegaria mudando a escola pelo avesso. Foram poucos os projetos que, efetivamente, saíram do papel. Ainda assim, a quantidade desses momentos foi maior do que os praticados por alguns dos meus colegas... Tempo. Tudo demanda tempo, apoio e estrutura.

A maior parte do que ficou no campo das ideias pedagógicas revolucionárias morreu por burocracia, pela falta de tempo para o conteúdo previsto (que é tido como “realmente” importante – veja que este conceito de importância é bem relativo) e pela preocupação com a minha capacidade de conseguir cuidar de tantas crianças tão pequenas ao mesmo tempo. Definitivamente, ter turmas numerosas também é outro fator que mata a criatividade na escola. Como supervisionar um grupo de 30, 40 alunos, todos pequenos? É uma responsabilidade grande, e sempre há aquele educando que, literalmente, sobe pelas paredes.

A escola mata o ímpeto de ser criativo não só dos alunos. Ela mata também a criatividade dos professores. A vida adulta por sua vez oculta o desejo genuíno de voltar a ser criança – o medo de ser ingênuo, infantil, insolente (em alguns momentos) se instaura em todos os lugares. Uma pena.

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