quarta-feira, 5 de abril de 2023

Xingu e o encontro inesperado com a minha tataravó

Imagem: print do site do Instituto Moreira Salles. 
(A legenda da foto diz: "Aldeia Khĩkatxi do povo Khisêtje durante queimada provocada por não indígenas no entorno da Terra Indígena Wawi, parte do Território Indígena do Xingu, 2022. Foto de Renan Suyá/Rede Xingu+")


No último final de semana estive no Instituto Moreira Salles para ver a exposição fotográfica sobre o Xingu. Ao contrário de andar por lá do mesmo modo de sempre, fazendo stories no Instagram para levá-los comigo, me dei a chance de um exercício de presença mais profundo: deixei o celular na bolsa e estive ali, por inteiro.

Segundo consta, minha tataravó era indígena. Dela, a única informação que me chegou é que se casou com um imigrante italiano chamado Lino. Não sei seu nome, porque ela ficou conhecida na família como "a índia". Na época em que fui atrás dessas informações — para um trabalho de artes, na escola — não se falava da violência física, das violações dos direitos das mulheres indígenas, da brutalidade da colonização. Hoje me pergunto: minha tata realmente se casou, será que "casar" é mesmo o verbo? Ou será que ela foi forçada e violentada como aconteceu com a maior parte das mulheres indígenas desde a chegada dos portugueses? Concluo que muito provavelmente ela foi mais uma vítima.

Quem me narrou essa anedota foi minha tia-avó. Uma freira muito simpática que ouvia essas histórias enquanto brincava embaixo da mesa da cozinha na infância. Ela completou: "minha vó, sua tata, contava enquanto cozinhava. Eu não me lembro de muita coisa. Me lembro mais da minha mãe ajudando descascar a mandioca, do cheiro da comida do fogão à lenha, das brincadeiras. O Zezinho era mais velho, acho que ele sabia mais". Zezinho, meu avô, já tinha falecido há alguns anos. Não deu tempo de perguntar a ele. Talvez ele soubesse o nome da minha tata, e ela não tivesse se apagado com a História. Meu tataravô que me perdoe, mas não me importa muito saber o nome do colonizador.

Voltando à minha visita ao IMS, me calei para ouvir. A exposição está dividida em duas salas e, na primeira delas, há muito da produção audiovisual produzida pelos próprios indígenas do Alto do Xingu. Os filmes mostram cerimônias, rituais, arte e cotidiano de diferentes povos e são narrados num misto de português e línguas de cada um deles. Me calei para ouvir. Ouvir seus sons, suas fonéticas tão bonitas. Ouvir seus cantos, seus sonhos, suas lutas.

A cada filme, a importância da conexão: o cinema na aldeia que tem popularidade apenas quando o filme é lá produzido, as histórias registradas em livros de literatura infantil, os jogos em realidade virtual que ensinam cada um que por ali passa a conhecer seu território e preservar fauna e a flora existes, as fotografias que denunciam o avanço do agronegócio, rolo compressor por onde passa, derrubando matas, queimando tudo, poluindo os rios. Calei para ouvir, para me conectar com essa ansiosa busca pela minha ancestralidade perdida, para refletir como eu — da minha brutal insignificância urbana — posso fazer algo (nem que seja votando em que quer ver a floresta em pé).

A segunda sala traz trabalhos de não indígenas que foram importantes para garantir que brasileiros e pessoas do mundo pudessem saber mais sobre quem são os verdadeiros donos desta terra numa época em que a tecnologia não era rápida e muito menos havia internet. Ali, além de fotografias dos icônicos irmãos Villas-Bôas, de Alice Brill, de Henri Ballot, de José Medeiros e de Maureen Bisilliat, há uma parede com retratos de muitos líderes indígenas, a exemplo do cacique Raoni — figura tão importante de momentos históricos que vão desde a promulgação da constituição de 1988 à passagem da faixa presidencial ao Lula, no início deste ano — e uma nota que eu considero importante: o destaque ao aumento de lideranças de mulheres indígenas na luta pelos direitos de seus povos.

O que mais me chamou a atenção, contudo, é o trabalho primoroso que o IMS tem feito para identificar as pessoas retratadas nas antigas imagens. Há um painel na exposição em que as legendas originais foram refeitas, passando de algo genérico para os nomes próprios dos retratados. Alguns desses registros têm mais ou menos a minha idade e, diz as informações, os esforços estão sendo para continuar a identificar um número cada vez maior de pessoas.

Ler as duas legendas (a genérica e antiga versus a precisa e atualizada), lado a lado com as imagens, me emocionou de um jeito que tive que me segurar para não chorar dentro do museu. No fundo, pensando agora enquanto escrevo, o Instituto Moreira Salles fez aquilo que eu gostaria de ter feito na minha adolescência: ele deu identidade, deu nome, deu direitos. O IMS honrou essas pessoas, assim como eu gostaria de ter honrado a minha tataravó, assim como até hoje eu gostaria de saber seu nome e o nome de seu povo.

Apesar de acompanhar a situação dos povos originários e de seguir vários indígenas nas redes sociais, há tempos não pensava na minha tata. De certo modo, estar ali foi me ver de frente a esta incógnita do meu passado. Saí do museu movida por uma inquietação que ainda não sei nomear e por uma insatisfação que me fez dizer à minha irmã que preciso voltar ali de novo. Preciso ver e ouvir todos aqueles filmes com ainda mais calma. Preciso processar essa angústia por ver pessoas tão sábias e fortes tendo seus direitos violados por apenas querem o equilíbrio entre a nossa pequenez humana e a grandiosidade da natureza, por apenas quererem existir.

Para quem estiver em São Paulo, Xingu: Contatos vai até o dia 09 de abril. O Instituto Moreira Salles está localizado na Avenida Paulista, n°2424, próximo à estação Consolação (Linha 2-Verde), e funciona de terça a domingo, das 10h às 20h. Além dessa exposição é possível ver outras, ir ao cinema e visitar a belíssima biblioteca. As exposições são gratuitas.

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6 comentários:

  1. Que bonita e ao mesmo tempo triste a reflexão você trouxe em seu texto! Durante a leitura é praticamente impossível não pensar na nossa própria ancestralidade e na importância dos povos originários.

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    1. Eu fico contente de ter provocado essa reflexão. Pensar nos povos originários é pensar no nosso futuro <3

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  2. Deve ser uma exposição riquíssima. Gostei bastante de conhecê-la.

    00080-00196366/2022-09

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  3. Oi Fernanda, ah esses "casamentos" de antigamente. O da minha avó não teve colonizador, mas também não foi escolha dela e a consequência tá aí até hoje com amontoados de problemas, principalmente psicológicos, atravessando gerações que fazem questão de fingir que tá tudo bem.

    Fiquei aqui imaginando como deve ser linda essa exposição. Não me lembro que ter visto nada parecido. Deve ser realmente uma experiência emocionante.

    Abraço!
    Helaina (Escritora || Blogueira)
    https://hipercriativa.blogspot.com

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    1. O bom de saber qual é o problema é que a gente pode lidar com ele. No meu caso, eu posso abrir espaço para pessoas indígenas e suas causas. :)

      Um beijo

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