domingo, 24 de julho de 2022

{Resenha} Romancista como vocação, de Haruki Murakami

Vem conhecer mais sobre o livro do Murakami. 


Em Romancista como vocação, Haruki Murakami faz uma profunda reflexão sobre a carreira que construiu para si mesmo como escritor, passando por temas importantes como o tempo e o espaço físico para desempenhar a profissão, o papel dos prêmios literários, como funciona o seu processo criativo, o que ele entende como originalidade, a relação que teve com a escola e sua carreira internacional.

A todo tempo o autor japonês tece críticas duras sobre as arbitrariedades dos prêmios literários, a forma como a sociedade poda a criatividade, a dureza de enfrentar um sistema educacional engessado. Também comenta como a sociedade em que cresceu (fruto do pós Segunda Guerra Mundial) foi se transformando ao longo dos anos e como essas mudanças impactam na forma de ver literatura.
No limite, e com certo exagero, podemos dizer que 'o escritor é aquele que tem necessidade de fazer o que é desnecessário'”. (página 14)

O livro não é muito grande em tamanho e, embora o autor retome alguns assuntos, ele é bem direto no modo de narrar a experiência. São 11 pequenos capítulos, cujos títulos resumem bem o que será tratado. Sendo assim, o leitor pode ler a obra como um todo ou, caso também seja escritor, retomar o livro de algum ponto em específico.

Sumário do livro com os nomes dos 11 capítulos.



Já no primeiro capítulo, Murakami tira o escritor do lugar de ser iluminado ao dizer que o trabalho de romancista não é “apropriado para pessoas muito inteligentes e de mente afiada” (página 12). Isso porque ele defende que o escritor, ao escrever, leva tempo para entender, organizar, digerir e expor tudo aquilo que faz parte da sua consciência. 

Outro ponto defendido pelo autor ao longo do livro é a disciplina (de continuar escrevendo, de usar o próprio corpo de modo inteligente, saudável e longevo, de lidar com as críticas, de como buscar a própria voz, de ficar ao redor do texto). Segundo Murakami, todo mundo pode escrever, mas nem todos aguentam continuar escrevendo: 
"Escrever um ou dois romances não é muito difícil, mas continuar escrevendo por muito tempo e viver disso é uma tarefa árdua. Talvez seja impossível para pessoas normais. Pois, digamos assim, é necessário algo especial. É claro que é necessário certo nível de talento e também de determinação. Além disso, a sorte e a coincidência são fatores importantes, nesse e em muitos acontecimentos da vida. Mas, acima de tudo, é necessário ter algum tipo de competência. Algumas pessoas são dotadas dela; outras, não. Mas sempre podem conquistá-la com certo sacrifício." (páginas 10 e 11)

Como escritora, em alguns pontos concordo com ele, em outros, penso de modo diferente. Acho que esse é o ponto mais legal de conhecer os processos criativos de outros autores: o que pode mudar no nosso ponto de vista sobre o nosso trabalho criativo ou não? É claro que Murakami vem de uma época e cultura muito diferentes da minha. Ele é mais velho, é homem e o modo de ver/valorizar a literatura no Brasil e no Japão são diferentes. Sendo assim, a leitura foi ótima para perceber esse intercâmbio de modos de perceber a profissão e o mundo.

É interessante notar como Murakami acabou descobrindo o seu estilo exercitando a tentativa de escrever um romance em inglês e trabalhando com traduções de seus próprios textos. Experimentar formas de se expressar e pensar como dizer da melhor forma possível em uma língua algo que já está dito foram pedras fundamentais no processo criativo. Fica então um aprendizado de como lidar com o famoso bloqueio criativo: trabalhar com outras línguas pode ser de grande valia para acessar a nossa criatividade (mesmo quando a gente não tem o mesmo nível de fluência de um nativo — como era o caso dele à época).

"De qualquer forma, depois de descobrir o efeito curioso de escrever em língua estrangeira e adquirir o meu próprio ritmo, guardei a máquina de escrever no armário e peguei novamente o papel e a caneta-tinteiro. E traduzi para o japonês o texto em inglês de mais ou menos um capítulo do livro. Mas o que eu fiz não foi bem uma tradução ao pé da letra: foi algo mais parecido com um transplante livre. Inevitavelmente nesse momento surgiu um novo estilo de escrever em japonês. O meu próprio estilo de escrever. Estilo descoberto por mim mesmo. Nessa hora pensei: Então basta escrever o japonês dessa forma. A ficha tinha caído." (páginas 28 e 29)

Murakami é defensor de que não importa muito os prêmios literários e o que diz a crítica, se escritores não têm bons leitores. Para ele, o que é fundamental, no fundo, é ter uma boa comunidade de leitores. Prêmios literários ajudam, contudo, a fazer com que o seu nome/obra chegue a possíveis leitores. Por estar em destaque, autor e obra podem chegar a quem lê pouco ou não tem muita intimidade com o universo literário. Ao escrever, entretanto, Murakami tem apenas uma preocupação em mente: "qual é o tipo de obra que vou poder oferecer a essas pessoas? O resto não passa de questões adjacentes" (página 43). Talvez por isso mesmo que ele tenha ganhado tantas traduções e leitores dentro e fora do Japão.

"A decisão sobre qual obra é original ou não deve ser delegada ao conjunto de pessoas que vão usufruir dela — os leitores — e à passagem apropriada de tempo. O que o escritor pode fazer é dedicar-se ao máximo para que suas obras permaneçam pelo menos como amostras cronológicas. Ou seja, acumular o máximo possível de obras satisfatórias, produzir volume que possua significado e criar de forma tridimensional um acervo de obras". (p. 54)

Um ponto que penso que é muito bacana sobre o Murakami é a maturidade que ele tem para abordar certos assuntos. Ele nunca parte do "eu acho" puro e simples, ainda que passe boa parte da obra reforçando que aquele é o ponto de vista dele (não uma verdade universal). Quando fala sobre sobre o que é original e o que torna uma peça (musical e literária), ele estabelece critérios e os apresenta ao leitor. Quando fala sobre tradução, há argumentos. Quando apresenta seu modo de encarar a carreira no Japão, nos EUA e o desempenho dos livros ao redor do mundo também. Até quando critica o sistema escolar japonês, há critérios e argumentos. Isso é muito interessante de notar porque é possível sentir que ele parou e pensou por tudo isso por um tempo. Não é uma opinião apenas (como vemos todos os dias nas redes sociais), mas uma reflexão profunda. 

Refletir profundamente é uma das defesas que aparecem no capítulo cinco, sobre como escolher o que se escreve. Nesse capítulo, Murakami dá uma pequena amostra de como o cérebro dele funciona, a importância da escrita e do não-julgamento. 

Além dos pontos mais filosóficos pelo qual todo escritor passa, em Romancista como vocação, Murakami também fala sobre pontos práticos do dia a dia que ele considera importante. No sexto capítulo, ele explica "de forma concreta como escrevo ficção, tomando o romance como exemplo" (página 78). Mais uma vez, ele apresenta critérios, já que "em geral a sequência e as regras básicas quase não mudam" (página 79).

"Afinal de contas, romancistas são pessoas que constroem o próprio mundo dentro da mente, um após o outro". (página 121)

 

Capa.


Livro: Romancista como vocação
Título original: Hokugyo Toshite no Shoetsuka
Autor:
Haruki Murakami
Tradução: Eunice Suenaga
Páginas: 168
Editora: Alfaguara
Apresentação: Mesclando detalhes da própria vida com digressões sobre o valor da literatura, um dos maiores escritores contemporâneos fala sobre o ofício da escrita.
Haruki Murakami é um dos mais conhecidos autores contemporâneos do Japão. Quando seus livros são lançados, a imprensa noticia filas enormes nas livrarias de Tóquio e traduções para mais de quarenta idiomas. Ícone da escrita fluida, Murakami transita bem em diversos estilos narrativos: ficção, ensaio, reportagem, nada parece estar fora de seu talento literário. Para abarcar toda essa multiplicidade, chega Romancista como vocação, uma série de proposições sobre a escrita, a literatura e a vida pessoal do recluso escritor. Escrito na linguagem acessível típica de Murakami, este livro é um convite a todos que desejam habitar o mundo dos romancistas, bem como uma declaração de amor ao ato da escrita.

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6 comentários:

  1. Nossa, não conhecia, mas achei muito interessante, vou procurar!

    https://clebereldridge91.wixsite.com/cepublications/blog

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  2. Oi, Fernanda. Tudo bem? Li alguns livros do autor e gostei bastante. Este aí parece ser muito bom. Adorei a resenha. Abraço!


    https://lucianootacianopensamentosolto.blogspot.com/

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    Respostas
    1. Oi, Lu!
      Quais você leu? Eu comecei por esse, mas nos livros da Patti Smith, ela menciona alguns dele, o que me deixou com muita vontade de lê-los.
      Um beijo

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  3. Olá!
    Amei essa edição e não imaginei do que se tratava. Gosto de ver e poder analisar reflexões verídicas de quem escreve e parece uma leitura positiva.
    Gostei da dica.
    Beijos.

    https://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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    Respostas
    1. Oi, Van!
      É legal ver como outros autores funcionam e ver o que dá pra trazer para a nossa rotina, sabe? Mesmo para quem trabalha com outros ramos da criatividade (que não seja a escrita) é possível adaptar.
      Um beijo :*

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