domingo, 16 de outubro de 2022

Sobre cactos, vampiros e unicórnios

Foto por Roberto Carlos Román Don, via Unsplash.

Quando comecei a dar aulas para crianças, minhas amigas professoras me precaveram: “dá trabalho, mas você irá se divertir, porque elas são cheias das pérolas”. Mal sabia eu o que viria pela frente...

Primeiro, surgem as curiosidades de praxe. Estes pequenos desbravadores do mundo começam pegando leve, numa tentativa de sondar o terreno e saber com quem estão lidando, depois fazem o teste de até onde podem ir. Como já aconteceu anteriormente com outros alunos, uma menina me perguntou se tenho filhos e, ao ouvir um “não” como resposta, disse com um ar de perita no assunto: “ah! Mas é fácil! É só engravidar ou adotar!”.

Conforme o tempo vai passando, a gente percebe que as crianças têm o seu próprio modo de demonstrar que se importam. E é isso que faz do convívio com elas uma relação sincera. Ano passado, no dia dos professores, ao entrar na sala do primeiro ano, um menino pegou um pequeno cacto em uma caixa cheia de suculentas e me deu de presente. Agradeci feliz, comecei a nossa rotina, até que percebi que um amigo discutia seriamente com ele:

— Vai lá e troca! A teacher não merece um cacto, a teacher merece uma planta!

Meu riso encheu a sala até que percebi que conversa entre o decidido e o inconformado estava indo longe. Então, interrompi para explicar que cactos são bem-vindos e que sim, gosto deles. Aproveitei para perguntar:

— Leo, você não quer dar um nome a ele?

— Ué, teacher, cactos são cactos, então o nome dele é Cacto, oras!

Foto por Nathalia Segato, via Unsplash.


Como iria discutir depois de uma dessa? Apenas aceitei a sabedoria infantil. Aliás, ser teacher não é só aceitar a sabedoria sobre como ter filhos ou nomear plantas, mas também a imaginação — que costuma ser fértil, muito, muito fértil. Esta semana, entre o “good afternoon” e correção da última lição de casa, ouvi um “teacher!”, exclamativo e urgente, de quem tinha algo importante para contar. Me aproximei atenta:

— Sou um vampiro! — Pedro sussurrou o seu segredo, com os olhos brilhando.

A vampire? Why? — perguntei tentando incentivá-lo a falar o tal do inglês.

Yes, teacher — ele respondeu solene — a vampire!

Minha expressão continuou na expectativa de compreender o que se passava. De súbito, Pedro ergueu o dedo indicador e, perito no assunto, abriu um sorriso que, por sua vez, me faz gargalhar. Ali estava ele, em sua troca de dentes de leite, com um espaço vazio de canino a canino. Ao me ver rindo, ainda disparou, tentando parecer malvado:

— Look! Eu bebo saaaaaangue!

Oh my God, Pedro! — Foi a única coisa que consegui dizer entre um ruidoso riso e outro... — Oh my God!

Brincadeiras à parte, voltamos para a tarefa da aula: desenhar os animais e escrever sobre suas características. Para ficar mais fácil (e eu não ter que lidar com a possibilidade de ter dinossauros, Pokemóns, X-Man e outros seres mágicos na lição), delimitamos como possibilidades os bichos de estimação, do zoológico e da fazenda, até que...

— Teacher, o Luciano está desenhando um unicórnio — denunciou o João.

— Unicórnios não existem! — Rebateu o Pedro, antes que eu dissesse algo.

Teacher, unicórnios existem, não existem? Diz que existem!

— Não existem, não! — João insistiu, querendo ver o circo pegar fogo.

Respirei fundo, enquanto pensava no que fazer, afinal, desiludir crianças nunca foi o meu forte. Tentei retomar o foco da atividade e o nosso combinado que me salvaria de ter unicórnios na tarefa.

— Lu, they are not pets, farm animals or from the zoo.

— Mas eles existem? — a esta altura, a insistência vinha acompanhada de lágrimas nos olhos. Acabei improvisando e dizendo que tudo o que a gente acredita existe. Unicórnios existiriam se ele acreditasse. Só assim, ele abaixou a cabeça e voltou à lição. Já eu, bem, eu respirei aliviada. Que poder eu tenho para acabar com esses seres fofos que espalham a pureza? A última coisa que quero é ter uma vida amaldiçoada. 

Trabalhei por dez anos como professora de crianças. Entre cactos, vampiros e unicórnios, fui feliz.

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10 comentários:

  1. Oi, Fernanda. Tudo bem? Muito bom o texto! A pureza de uma criança não tem preço!


    https://lucianootacianopensamentosolto.blogspot.com/

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  2. Ah que delícia é conviver com os pequenos e ver o mundo por seus olhos cheios de imaginação e liberdade! Adorei! ;) boa semana! beijos

    www.ludantasmusica.blogspot.com

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    Respostas
    1. Oi, Lu!
      Essa era a melhor parte de trabalhar em escola. É o que mais sinto falta também. hoje esses pequenos não estão mais tão pequenos, mas continuam me enchendo de orgulho :)

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  3. Dar aulas a crianças é bem isso mesmo, eu gostava muito e também tenho saudades! Texto lindo! Feliz dia, Fê! Beijos!

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  4. Oi Fernanda, tudo bem?
    Adorei seu texto! Tem a mesma leveza e doçura da imaginação infantil. Eu não sei se conseguiria lidar com tantas perguntas. Ia acabar falando demais... hahaha...

    Até breve;
    Te espero nos meus blogs!
    https://hipercriativa.blogspot.com (Livros, filmes e séries)
    http://universo-invisivel.blogspot.com (Contos, crônicas e afins)

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    Respostas
    1. uahahahahaha
      Os anos em sala ajudam a gente a não falar demais!

      um beijo :*

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  5. Lidar com crianças é muito bom. Elas são incríveis!

    Boa semana!

    O JOVEM JORNALISTA está no ar com muitos posts interessantes. Não deixe de conferir!

    Jovem Jornalista
    Instagram

    Até mais, Emerson Garcia

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