Ponto de partida
Fernanda Rodrigues
quarta-feira, junho 14, 2023
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Foto por Flirck, via Pexels. |
O lugar lhe era familiar. Ana Cristina crescera ali. Foi naqueles corredores em que ela descobriu o mundo. Foi ali que ela aprendera a dar os passos típicos da quadrilha junina, fizera os primeiros arremessos de basquete, descobrira o que é o amor romântico e ter o coração partido. Principalmente, ali por entre aquelas camas e salas, Ana Cristina foi forçada a amadurecer: tudo sempre estava bem, mesmo quando não estava bem. Norma social, em um lugar como aquele, se converte em regra de sobrevivência.
Abrigo. Apesar do nome, aquela casa lhe deixava confusa: não era o inferno violento que marcou seus primeiros anos de vida. Tampouco, o paraíso. Dividir tarefas, ver pessoas e mais pessoas chegando e partindo. Afeto que não pode ser muito afetuoso para não se apegar. O tictac do relógio que lhe roubava dia após dia as esperanças. Foi naquele espaço que Ana Cristina aprendeu na prática o que é a passagem do tempo: entrara no abrigo sendo uma criança e o tinha deixado praticamente mulher.
Assim que completou 18 anos, Ana Cristina se viu forçada a mudar de vida radicalmente, não podia ficar mais no local que lhe serviu de lar temporário por tantos anos. Assim, decidiu atravessar o país para cursar universidade. Apesar da dúvida entre Filosofia e Direito, acabou assinalando Serviço Social na inscrição. Um impulso que se converteu em carreira e em vida.
Pesquisou a vulnerabilidade tão presente nos povos marginalizados. Casou-se, teve dois filhos a quem amou mais do que tudo. Desejava a felicidade da família mais do que a própria. Se forçava a seguir o script que sempre lhe foi ausente. Nunca escondeu sua origem, embora evitasse tocar no assunto. Dor. Empurrada. Debaixo do tapete. Socada como o soluço que vez ou outra deixava escapar enquanto a casa ainda estava vazia e o pôr do sol se fazia ser visto ao longe.
— Mãe, tá tudo bem? — O filho adolescente chegando de mais um dia de aula a chamava de volta à realidade.
Foram as marcas de expressão, cada vez mais acentuada que a fizeram querer voltar. Certa manhã de sábado, próximo de seu aniversário de 60, quando a mais velha interrompera uma discussão acalorada com o irmão:
— Mãe, o que você vai querer de presente de aniversário?
— Pode pedir qualquer coisa. A gente paga.
— A gente, Pedro? Você quer dizer eu, né?
— Não se acha, garota. Logo eu começo a trabalhar também. Mãe, vai querer o quê?
A palavra “voltar” saiu mais rápido do que Ana Cristina pôde raciocinar. “Baixar a guarda como um porco-espinho que recebe amor” — a frase escrita em um muro ainda ecoava em sua cabeça. Voltar. Ao ver a empolgação de seus filhos, Ana Cristina sabia que seria muito difícil dissuadi-los: não havia espaço para a devolução do presente que ainda não havia recebido. Voltar. Ela, que não queria recordar, que não queria falar, que não queria reviver. Por que havia soltado essa palavra, meu Deus? Logo ela, que tanto esforço fez para deixar tudo no passado, querendo voltar?
Foi assim, que Ana Cristina se viu, um mês depois, com os dois filhos e o marido, tomando um avião e um ônibus para a cidade do interior do país, apresentando a todos eles as pequenas surpresas há tanto escondidas. Ainda havia muito a aprender.
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Este conto foi escrito a partir da proposta do Desafio Criativo para o mês de junho de 2023, cujo tema é Porco-Espinho: Surpresas escondidas à vista de todos. O Desafio Criativo é organizado todos os anos pelo Projeto Escrita Criativa, que está desde 2015 reunindo na internet pessoas que amam escrever. Para saber mais e participar, acesse www.projetoescritacriativa.com. |
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