sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Livros que comprei em Buenos Aires

sexta-feira, outubro 31, 2025 0

Como contei aqui, passei meu aniversário em Buenos Aires e é claro que eu aproveitei a viagem para fazer uma das coisas que mais amo: comprar livros!  YAY!

Trouxe cinco. E agora vou compartilhar um pouco dessas compras, assim como fiz com os que comprei n'A Feira do Livro.


Diario de la dispersión

Quando eu fiz a a disciplina de mestrado como aluna ouvinte lá na Unifesp, a professora Paloma Vidal nos apresentou o começo do livro Diario de la dispersión, da argentina Rosario Bléfari. Eu li aquelas páginas e fiquei encantada. Procurei para comprar aqui e não achei, por isso viajei na missão de trazer um exemplar comigo. Bléfari, assim como a Patti Smith, é uma multiartista, algo que me encanta e me inspira. 😍

Achei o livro no Mercado Livre, vendido pela livraria Libros Del Buen Leer (@delbuenleer). Pedi pra entregar na casa da Ayumi (quem tem amigo, tem tudo!) e trouxe feliz. 😁 Nem preciso dizer que ele passou na frente de todos os outros livros que tenho para ler, preciso?

Capa de Diario de la dispersión.

Livro: Diario de la dispersión
Autora: Rosario Bléfari
Editora: Mansalva
Páginas: 144
Gênero: Poesia e ficção latino-americana 
Apresentação: Pasaron las semanas, los meses, y en el camino muchas veces pensé que este era el diario de la dispersión pero también el diario de mi salud debilitada –aunque no hiciera alusiones directas a ella–, el diario de las despedidas, el diario de una mujer que responde a la obligación filial de hija única para salvarse a sí misma al mismo tiempo, el diario del amor, la maternidad y la amistad a distancia. Podría seguir cada tema sin mencionar los demás, pero explicitar parte o no explicitar nada se volvió un dilema. También estas dudas son parte del análisis de la dispersión. Puedo decir a esta altura que mi método funciona, estoy segura, pero este experimento se me fue de las manos: ahora todas las personas del mundo lo están probando. Algunos reniegan, otros gozan, algunos se angustian y otros se sorprenden. Desplegarse no es desaparecer, no es alejarse o ser voluble sin sentido. Rosario Bléfari.


Promoção de poesia

Na minha segunda semana de viagem, aproveitei o meu tempo para passear pelas inúmeras livrarias da Corrientes. Na Sudeste Libros (Corrientes, 1773), eu encontrei uma promoção que me chamou a atenção: 3 livros de poesia por 10000 pesos (cerca de 40 reais). Não pensei duas vezes. Peguei 3 de uma mesma coleção: antologias que apresentam as obras de seus autores.

Ironicamente, não escolhi nenhum argentino, mas isso não invalida o contato com a obra e com a língua espanhola. Dentre as opções disponíveis, li os poemas da quarta capa para fazer a escolha. 



O primeiro escolhido foi do mexicano Octavio Paz; o segundo foi o do poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca; por fim, o terceiro é do também espanhol Rafael Alberti. Sei que os três são famosos, mas não tive a oportunidade de ler a obra deles, então será um bom primeiro contato. 

Poema da quarta capa do livro do Octavio Paz:

Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.

Poema da quarta capa do livro do Federico García Lorca:

Yo me enamoré del aire,
del aire de una mujer,
como la mujer es aire,
en el aire me quedé.

Tengo celos del aire,
que da en tu cara,
si el aire fuera hombre
yo lo matara.

Poema da quarta capa do livro do Rafael Alberti:

Si mi voz muriera en tierra, 
llevadla al nivel del mar y
dejadla en la ribera.

Llevadla al nivel del mar
y nombradla capitana
de un blanco bajel de guerra.


El Ateneo Grand Splendid

Nas outras vezes em que fui a Buenos Aires, comprei CDs que não encontro por aqui, na El Ateneo Grand Splendid (Avenida Santa Fe, 1860). Desta vez, resolvi trazer um livro. E foi uma escolha difícil, porque eu fiquei na dúvida entre o que trouxe a Poesía completa, do Júlio Cortázar (que, pelo o que entendi, acabou de sair). Acabei optando pelo Poesía completa, da escritora argentina Alejandra Pizarnik, uma vez que já tinha comprado 3 livros escritos por homens. 

Ela é outra escritora que é famosa que eu nunca li. Então, nada melhor começar com a obra poética completa, não é mesmo?

Capa do Poesía Completa.

Livro: Poesía Completa
Autora: Alejandra Pizarnik
Editora: Lúmen
Páginas: 480
Apresentação: Alejandra Pizarnik es una figura de culto de las letras hispanas y una autora que se internó por infiernos raramente visitados por la literatura española. Su poesía se caracteriza por un hondo intimismo y una severa sensualidad o, en palabras de Octavio Paz, la obra de Pizarnik lleva a cabo una «cristalización verbal por amalgama de insomnio pasional y lucidez meridiana en una disolución de realidad sometida a las más altas temperaturas». Esta edición, a cargo de Ana Becciu, incluye los libros de poemas editados en vida de la autora y los poemas inéditos compilados a partir de manuscritos. Reseñas: «Sobre mi mesa, lleva semanas abierto el volumen que contiene la Poesía completa de ese irrepetible y doliente meteoro que fue Alejandra Pizarnik (1936-1972), de quien no me resisto a transcribir unos versos estremecedores: no atraigas frases / poemas / versos / no tienes nada que decir / nada que defender / sueña sueña que no estás aquí / que ya te has ido / que todo ha terminado.» Manuel Rodríguez, Babelia «La palabra parece la guarida que no siempre es capaz de proteger. Su poesía es luminosa en la oscuridad; provoca vértigo, perturba; las ausencias pesan y la belleza desgarra.» Estandarte

Post em vídeo

Gravei um vídeo em que mostro mais de cada livro. Para assisti-lo, clique aqui ou aperte o play abaixo:


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domingo, 26 de outubro de 2025

Tricotando no avião: como levar o seu projeto sem problemas

domingo, outubro 26, 2025 8
Tricô e viagem sempre se dão bem!

Ano passado eu resolvi que queria sempre ter um projeto de aniversário, algo que colocasse as minhas mãos e a minha arte em movimento. Comecei com a manta do clima (você ler sobre ela aqui, ou vê-la no meu canal, no YouTube) e, para este ano, resolvi fazer mais uma versão do Hope Summer Top (receita gratuita, em inglês e em espanhol, feita pela Nerea Moreno, disponível aqui).

Minha primeira versão do HOPE Summer Top.


A primeira vez que fiz essa blusa foi em 2023. Usei o fio Verão, da Círculo, na cor azul bic. Embora a proposta desse fio seja ele ser fresco, confesso que achei que a blusa ficou um pouco quente pro clima cheio de ondas de calor de São Paulo. Acabei vestindo-a mais no período de meia-estação. (Parece que o verão de 2026 será mais fresco, então, espero usá-la mais vezes).

Tendo tudo isso em vista, resolvi tecer a mesma blusa, usando o fio Anne Natural (também da Círculo). Como iria viajar, decidi que este também seria o meu projeto de viagem (além de ser o de aniversário).

Preparativos para a viagem

Comprei dois novelos; mas, ao fazer a amostra de pontos, notei que este é um fio que rende. Resolvi que levaria apenas um na viagem, uma vez que sabia que não terminaria a blusa toda por lá. 

Sobre a escolha da agulha, abri mão da minha preferida, a de metal. Sabia que poderiam implicar com ela, ao passar nos raios-X dos aeroportos. Sendo assim, escolhi a circular de bambu + silicone (com cabo de 80 cm, porque eu gosto de ter espaço, mesmo tricotando reto).

De material auxiliar, separei dois marcadores de plástico (um para a divisória do decote e outro para prender os fios da costura); um bloquinho de anotações e uma caneta; um parador de pontos de silicone para o fim da agulha e uma fita métrica.

Materiais levados na viagem. Blusa com tecitura já mais avançada.

Resolvi não levar tesoura. Como escolhi fazer a peça inteira com um fio só (sem as listras coloridas do original) sabia que só precisaria de cortar o fio duas vezes. Eu o fiz arrebentando com as mãos, mesmo. Mas nada que pedir um corte na recepção do hotel também não funcionasse. (Ao que me parece, é possível levar uma tesoura pequena no avião, desde que ela tenha menos de 10 cm de lâminas. Se você quiser levar uma na sua viagem, informe-se com a companhia aérea para ter certeza de que é isso mesmo.)

Para evitar de montar a peça no avião, comecei uns dias antes e já fui com a barra da blusa tricotada (viajei com uma amiga e achei que seria chato ter que ficar contando os pontos na hora da montagem da peça na agulha, estando com ela e mais um monte de gente ao redor).

No aeroporto e no avião 

Para facilitar, a bolsa de tricô era o item mais fácil de tirar da mochila que levei como mala de mão. Tanto em Guarulhos, quanto no Aeroparque, na ida e na volta, ninguém no raio-X pediu para ver o meu material de tricô.

No avião, coloquei a mochila nos meus pés, o que facilitou de eu pegar e guardar o projeto durante o voo. Tricotar foi bem tranquilo e relaxante. Ajudou o tempo a passar depressa e a acalmar a ansiedade do "chegar logo".

Sobre o projeto escolhido

Acho que fiz uma boa escolha em levar o Hope Summer top pra viagem. Ele é um projeto que não exige muito espaço na bagagem ou muitos materiais. Além disso, a receita é simples, sem pontos decorativos. Aquele tipo de trabalho que você não precisa ficar pensando muito, que é possível fazer enquanto conversa com alguém.

Penso que considerar o tamanho do projeto, a sua complexidade e o perfil da sua viagem é importante ao levar o seu tricô na bagagem (não seria viável, por exemplo, levar a manta do clima, que já estava enorme e volumosa e que envolve muitos novelos de cores diferentes).

Sobre o fio, o Anne Natural solta alguns fiapinhos enquanto a gente tece. Nada que continue depois que a peça já está pronta.  Isso pode ser ruim para algumas pessoas (a mim, não me incomoda). Eu gostei de dois pontos: um é que ele rende muito (um novelo deu para fazer a frente e mais da metade das costas da blusa), o outro é que ele desliza muito na agulha. Mesmo usando uma agulha fininha, o trabalho rendeu rápido.

Durante a viagem eu consegui fazer mais da metade da peça, mesmo tricotando em momentos esporádicos, como antes de dormir. 




Recapitulando

1. Escolha um projeto pequeno, que envolva poucos materiais e que tenha um nível de complexidade que se encaixe bem com a sua viagem;
2. Evite agulhas retas (as mais antigas têm metal dentro) ou de metal. Opte pelas de plástico ou pelas bambu + silicone. Também evite as que sejam mais pontiagudas. Assim, você se poupa de ter que se explicar no raio-x ou de ter que jogar fora as suas agulhas.
3. Faça a mesma coisa com os assessórios: opte por marcadores e agulhas de tapeçaria que sejam de plástico. Se for levar tesoura, certifique-se de que a sua atende às orientações da companhia aérea.
4. Deixe o seu material o mais fácil possível de pegar e guardar. De preferência, perto dos seus pés (não no bagageiro acima. Assim, você não precisa ficar se levantando e se sentando, principalmente se estiver nas poltronas da janela ou na do meio).
5. Divirta-se e tenha, ao final da viagem, uma peça que te remeta às boas lembranças daquele período! 😉
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domingo, 19 de outubro de 2025

{Vou por aí} Visitando o Ecoparque em Buenos Aires

domingo, outubro 19, 2025 6


Quem acompanha o blog há muito tempo sabe que eu visitei o zoológico de Buenos Aires em 2015. Em 2016, o zoo fechou. Após uma reforma e da recomendação de boa parte dos animais, o espaço foi reaberto em formato de Ecoparque. Portanto, chegou a hora de atualizar o post antigo.

Como chegar

A estação de metrô mais próxima é a Plaza Itália (Línea D - Verde). Entretanto, durante a minha vista a Buenos Aires, essa estação estava em reforma. Desci na Scalabrini Ortiz (que fica a 3 ou 4 quadras - pequenas - dali).

Vista do lago localizado logo após a entrada.

Sobre a entrada

A entrada é gratuita para argentinos, residentes e estrangeiros. É preciso, entretanto, passar por uma catraca. A entrada é dividida entre catracas para estrangeiros, para grupos de estudantes, para residentes, para aposentados etc. Não perguntei, mas creio que seja para controle de quantos e quais são os vistantes do espaço.

Sobre alimentação e banheiros

Cafeteria localizada na entrada. Além dela, há outros estabelecimentos que vendem comida.

Além de uma cafeteria, há vários quiosques e food trucks vendendo todos os tipos de lanchinhos (medialuna, choripán, empanadas, cupnudles, refrigerantes, água e guloseimas de todos os tipos). Eu não usei os banheiros, mas há vários dentro do parque.

Sobre os animais

Neste recinto há um casal de aves que não podem mais voar e que, portanto, não pode ser reintroduzido na natureza.

A maioria dos animais do zoológico foi remanejada para outros espaços mais adequados ou devolvidos à natureza (quando possível). Há alguns animais expostos, mas achei muito bacana que em todos os recintos há placas explicando o motivo de eles estarem lá: desde onça-parda (puma) nascida em cativeiro, que não pode ser solta, até duas fêmeas de bisão que estavam no zoológico e são muito idosas para se mudarem.

Todos os animais que estão lá têm uma plaquinha como esta explicando o motivo.

Além disso, em todos os espaços de animais há a inscrição de que animais silvestres não são de estimações. 



Maras e pavões continuam soltos pelo parque. 😉

Educativo e trabalho ambiental

Visitei o parque numa quinta-feira. Havia vários grupos de estudantes circulando com seus professores. Também havia grupos fazendo visitas guiadas. Dentro do parque existe uma biblioteca que pode ser visitada às quintas e sextas-feiras às 15h. (Informações oficiais aqui).

Árvore de flores bonitinhas.


No Ecoparque há todo um trabalho ambiental que é desenvolvido no sentido de preservar as espécies tanto de fauna quanto de flora. Eles ajudam na reabilitação de animais e na soltura, quando possível.

Além disso, ao longo do passeio é possível ver algumas obras de arte, a exemplo da escultura abaixo:


Lojinha

Eu não entrei, mas há uma loja em que é possível comprar lembrancinhas e pelúcias de recordação e para dar de presente.

Quer visitar também?

Várias borboletas polinizando o parque.

Então anote aí:

Ecoparque Buenos Aires
Estação de metrô mais próxima: Plaza Itália (línea D) - se ela ainda estiver em reforma, a mais perto é a Scalabrini Ortiz (também da Línea D).
Entrada pela Plaza Itália
De terça a domingo e feriados, das 10h às 17h. 
Fechado quando chove.
Gratuito.

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domingo, 12 de outubro de 2025

{Resenha} Cartas perto do coração, de Fernando Sabino e Clarice Lispector

domingo, outubro 12, 2025 5


Cartas perto do coração é um livro editado por Fernando Sabino, que reúne as correspondências trocadas entre ele e Clarice Lispector entre os anos de 1946 a 1969. Àquela época, Sabino morava no Rio e viajou um tempo a Nova York, já Clarice se dividiu entre estar parte deste período em Berna, na Suíça, parte nos Estados Unidos.

Fiz a leitura do livro durante a minha viagem a Buenos Aires e começo dizendo que foi uma excelente escolha. A obra é leve, e as cartas são curtas e sinceras, o que torna as Cartas perto do coração como o próprio título diz: aquela companhia que nos deixa com o coração quentinho.  

Li de novo e fiquei tão contente… Foi de novo uma carta sua, e uma conversa. Fiquei animada, não importa que daqui a pouco acabe e eu vá com alma morta para a costureira… O que importa é que fiquei como estou agora, bem na primavera. De repente me pareceu que eu devo continuar a trabalhar, que tudo está ruim, mas que é assim mesmo, que as coisas são desconhecidas até que rebentam numa conhecida, a pessoa que está só no mundo de modo que deve tomar certas providências urgentes de silêncio e meditação, já que não se sabe nem se pode agir, e de que de vez em quando a gente pode receber este presente gratuito que é a palavra amiga de um amigo, e suponho que se há compensação e não vejo por que ela haveria de ser maior — esta já é grande e é mais do que se merece. 
Clarice Lispector em carta a Fernando Sabino. Como datou a própria autora: Europa, Suíça, Berna, Ostring, 5 de agosto de 1946, segunda-feira de manhã, 10 horas menos 10 minutos.

É muito bonito ver a franqueza maravilhosa com que cada amigo se abre nas missivas, uma vez que os autores conversavam sobre absolutamente tudo: desde a viagem da Clarice ao Egito (e o assombro que ela sentiu ao ver a Esfinge), passando por sonhos tidos durante o sono, pelo divórcio de Sabino e a relação dele com os filhos, pelos respectivos processos de escrita, pela solidão de estar em um país tão diferente do Brasil, pelo medo de ter o manuscrito rejeitado, pelos pedidos de ajuda para encontrar locais para publicar quando o dinheiro faltou. 

Nova edição, em capa dura.

Tanto para quem é um escritor, quanto para quem é leitor curioso, é interessante notar que tanto alguns alguns desafios, quanto a inquietação e o instinto profissionais se mantém ainda hoje. A angústia de escrever sem ter a certeza de que o texto está bom, a busca por um título que seja eficiente, o compartilhar com o par, a dúvida de ser publicada, a pressa em querer ser lido. Tudo isso se apresenta no livro. Além disso, Sabino faz algumas leituras críticas de alguns textos de Clarice, e é muito banca vê-los conversando sobre isso, acatando (ou não) as sugestões dadas por ele.

É em verdade um conto tão bonito, Clarice, um conto que só se escreveria na Europa, na Suíça. Por ele, posso perceber uma coisa muito mais importante do que a própria importância do conto: que você está escrevendo bem, com calma, estilo seguro, sem precipitação. Talvez porque agora você já não esteja sofrendo muito, mas sofrendo bem: é uma diferença bem importante, para a qual o Mário sempre me chamava a atenção. A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo. É o reflexo disso que vejo no seu conto, você procura escrever bem, e escreve bem. Me deu vontade de enunciar agora um truísmo: 'O problema para quem escreve é antes de tudo um problema literário.' Álvaro Lins.
Fernando Sabino, em carta a Clarice Lispector, escrita em Nova York, datada de 17 de setembro de 1946.

Para quem tem medo de ler os romances da Clarice, penso que este livro é uma boa porta de entrada na literatura dela (assim como os de crônicas), justamente porque mostra dois pontos fundamentais: o primeiro é como a cabeça dela funcionava; já o segundo, é porque o livro a tira deste lugar de musa indecifrável da literatura brasileira (que muitos críticos e leitores a colocou) e a põe num lugar humanizado, gente como a gente, que abre o coração para um amigo querido. 

Capa da versão brochura.

Livro: Cartas perto do coração
Autor: Fernando Sabino (e Clarice Lispector)
Páginas: 208
Editora: Record
Gênero: Cartas
Apresentação: A longa e profunda amizade entre dois dos mais importantes escritores brasileiros reflete-se nas cartas trocadas por eles entre 1946 e 1969. Permeada pelo espanto e fascínio dos autores ante o futuro, Cartas perto do coração traz a correspondência entre Fernando Sabino e Clarice Lispector e permite, a reboque, descobrir o mundo interno desses dois escritores quando jovens.Na última fase da vida de Clarice Lispector surgiram-lhe outras relações de amizade, mas o relacionamento entre ela e Fernando Sabino foi o primeiro e um dos mais intensos desde o início de sua carreira literária. Em janeiro de 1944, Sabino mal havia completado vinte anos e recebia, em Belo Horizonte, onde morava, o exemplar de um romance chamado Perto do coração selvagem, com uma dedicatória da autora, Clarice Lispector, ainda desconhecida do grande público. “Fiquei deslumbrado pelo livro,” confessa Sabino.Depois de apresentados um ao outro por Rubem Braga, os dois começaram uma amizade marcada pelo convívio diário e conversas marcadas em confeitarias da cidade. Uma ligação retratada em Cartas perto do coração. A amizade continuou , através dessas cartas, com uma freqüência só interrompida quando se encontravam os dois no Rio de Janeiro. “Trocávamos idéias sobre tudo,” conta Sabino. “Submetíamos nossos trabalhos um ao outro. Reformulávamos nossos valores e descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era mais do que a paixão pela literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens ’perto do coração selvagem da vida’: o que transparece em nossas cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solidários ante o enigma que o futuro reservava para o nosso destino de escritores.”

PS: eu li a edição em brochura, da capa branca. Agora saiu a edição em capa dura, com prefácio da Nadia Battella Gotlib. Mais informações sobre a edição nova, aqui.

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domingo, 21 de setembro de 2025

Presente: a colheita do cultivo

domingo, setembro 21, 2025 4
Foto feita por mim da vista do hotel. :)


Há muitas maneiras de se colocar no mundo. Uma delas, talvez a principal, é se vendo presente nele. Estar em um lugar sem internet móvel, caminhar sem preocupação, comprar um livro preferido, celebrar o aniversário à beira do rio. Ser mar. Desaguar. Ver e ser vista, nos caminhos, no trabalho, nas relações, na vida. 

Nunca esperei que passaria o meu aniversário na minha cidade preferida, caminhando com a minha amiga à beira do cais, vendo e ouvindo pessoas falando a minha segunda língua ao meu redor, comendo as minhas iguarias preferidas. Visito igrejas que queria conhecer desde a década passada. Peço, agradeço e sonho. O ritmo é outro, porque o caminho é outro. O mundo não gira, ele capota, e eu aceito as múltiplas camadas que ele me apresenta. 

Recebo felicitações inesperadas. 
Sorrisos reais e virtuais. 
Abro espaços: dou informações com a confiança de um local. Ouço minhas músicas preferidas vindas de autofalantes que não são os meus. Percebo que carrego o que preciso comigo: conhecimento e generosidade. Os pequenos sinais existem para quem está atento a ouvir. 

A colheita é fruto do meu trabalho interno. Me reconheço em épocas que não vivi, muita familiaridade em espaço-tempo desconhecido. Recompensa codificada, mensagem decifrada. Nada mais importa quando encontramos a paz. 

Uma próxima fase: olho para o passado para refletir sobre o futuro. Renasço no caminho das borboletas. Elas me guiam à entrega: a transformação é garantida e é bonita. Aterro a minha energia, troco sorrisos e a vida se torna abundante em sua mudança. Uma nova etapa se inicia, enquanto cruzo o portal. O meio do caminho é um mistério. 

Há magia. 
Há criatividade. 
Há amor. 

Tudo isso é poder.
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domingo, 14 de setembro de 2025

Crisálida

domingo, setembro 14, 2025 2
Imagem por Pon Malar - Obra do próprio, CC BY-SA 3.0 
(fonte: Wikipédia)


A pausa. O silêncio. Ouvir quando se morar numa megalópole, em tempos de celular como extensão do corpo, é um processo complexo. É preciso cavar tempo para o desdobramento interno. Parar e escutar sem julgamentos. De onde vêm o amor, o cansaço, a euforia, a tristeza… a força para acordar cedo é fruto da descoberta que o corpo fala com movimentos nunca vistos?

Como muitas das minhas contradições, apesar de ser uma pessoa noturna, sou solar. Amo os ruídos da noite: tricotar em silêncio quando um carro passa distante, ao mesmo tempo em que bebo o meu chá depois de ver uma partida de futebol na TV. Escrever depois disso o registro desse turbilhão silencioso, me deitar num lençol recém-trocado, dormir o sono dos justos. Amo a noite e sou capaz de ficar horas desfrutando de sua brisa fresca fruto de um dia quente. 

Entretanto, sou uma apaixonada pelo sol e pelo verão. Neste ano tivemos um inverno que, ao menos para mim, me pareceu mais rigoroso. Sofri demais. O corpo parecia enferrujado, mesmo fazendo aulas de dança e de Pilates. O humor estava sem disposição alguma, ainda que os exames de sangue dissessem que está tudo bem. O nublado, o frio, a pouca chuva que traz consigo a secura do ar. Tudo me faz ser uma pessoa que tem certeza de que não aguentaria viver em nenhum destes países do Hemisfério Norte, em que o dia quase não existe durante a estação mais fria do ano.

Gosto de observar, entretanto, as estações. Elas me mostram o quanto nada é permanente. Estamos no fim do inverno e nesta semana eu pude notar os primeiros sinais da primavera dando um "oi" lá no horizonte: a luz solar despontando mais cedo e iluminando toda a cozinha pela manhã, bem-te-vis fazendo a sua sinfonia horas antes do esperado e sabiás soltando os primeiros pios, calor que começa antes das 10 e vai crepúsculo adentro. Tudo corroborando para um renascer. 

Quando a natureza renasce, eu renasço junto. Não só porque eu sou parte do todo, mas porque sou solar. Sou expansão. Sou calor. Sou inteira. 

Clarice dizia que se sentia morta quando não escrevia. Os primeiros meses de 2025 foram difíceis pra mim, porque entendi exatamente o que ela queria dizer com isso. Mesmo me forçando a comparecer diariamente ao meu ofício, algo esteve minimamente semimorto.  Cobra trocando de pele. Ovo virando lagarta. Lagarta se recolhendo em casulo. Casulo envolvendo crisálida. Seda. Crisálida poética e machadiana. 

Aprendo com a natureza. 

Embora ainda não tenha muita clareza. Surrender. O que é o "render-se" afinal? O deixar fluir ainda me vem cheio de interrogações. Tento relaxar os ombros, abrir espaço.

Observo. 

Provavelmente a lagarta não recolhe pensando que vai vai se tornar mariposa ou borboleta. Ela só vai. Eu apenas fui, vou, irei.

A vida é bela mesmo em seus tropeços.

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domingo, 7 de setembro de 2025

Defenestração

domingo, setembro 07, 2025 3


Fenestra é janela em latim. De- é um prefixo, também latino, que significa movimento de cima para baixo. Logo, podemos descrever a ação de atirar algo pela janela como defenestrar, e o ato, em si, como defenestração.

Embora seja professora de língua portuguesa, não estou aqui para dar aula sobre a origem das palavras. Tampouco, para dizer que aprendi a etimologia de defenestração nas aulas de latim ou lendo algum dos (maravilhosos!) livros do Caetano W. Galindo. Escrevo hoje na tentativa de defenestrar no papel algumas palavras carinhosas a pessoa que me ensinou o significado do vocábulo de uma maneira muito mais engraçada do que o primeiro parágrafo metódico do meu texto. Tal pessoa é Luis Fernando Veríssimo.

Quando criança, meu pai trabalhava na editora Abril. Ele sempre trazia um exemplar da Veja e da Veja SP para casa. Eu, por minha vez, sempre folheava as revistas nada atrativas para uma criança e lia aquilo que conseguia compreender: a última página, a página das crônicas. 

Claro que, naquela época, eu não entendia que crônica era um gênero discursivo que, como explicou o Antônio Cândido no famoso texto publicado na coleção Para Gostar de Ler, fala sobre temas ao rés do chão. Lia porque a simplicidade me divertia. 

Anos mais tarde, já frequentando a biblioteca, descobri aquele autor meio careca, meio gordinho, que tinha muitos — mas muitos MESMO — livros publicados em que narrava cenas do cotidiano. As tais das crônicas. Comecei com as Comédias para se ler na escola e não parei mais. Veríssimo, pra mim, tornou-se sinônimo de verdade, uma verdade íntima que me revelou uma epifania solar: também queria escrever acerca dos causos e mais causos que tanto observara. 

No meio de todos aqueles textos, lá estava a tal da Defenestração

Se hoje defenestro, do alto da minha caixola, palavras no papel, é porque antes de mim houve um Luis Fernando (veja só, Fernando, assim como eu!), que do alto de sua timidez não deixava de observar (!!!) tudo ao redor e que fazia questão de amar a língua como instrumento não só de trabalho, mas de vida. Por isso, a notícia de sua passagem, me deu um nó no peito. Perdemos um dos grandes!

O nó veio por saber que ele é eterno; mas, agora, etéreo. Sublimou-se em sua presença física, não vai mais defenestrar palavras sobre nós, ainda que seu legado se sustente firme, forte, sorridente, crítico e bem-humorado. 

Certa vez ouvi o Mick Jagger dizendo que só se sente velho quando ele vê alguém que ama partindo. A idade pesou por aqui, no dia em que o Veríssimo se foi.

Mas, para não terminar esta crônica de maneira tão solene e triste (acho mesmo que o Veríssimo detestaria isso), deixo abaixo a Defenestração, do próprio autor — muito melhor do que as minhas palavras, que de sinceras soam piegas. Divirtam-se:

Luis Fernando Veríssimo
(Imagem: Unesp/divulgação)


Defenestração

Luis Fernando Veríssimo

Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A falácia Amazônica. A misteriosa falácia Negra. 

Hermeneutas deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria. 

Os hermeneutas estão chegando! 
— Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada... 

Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisa recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. 

— Alô... 
 O que é que você quer dizer com isso? 

Traquinagem devia ser uma peça mecânica. 

— Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto. 

Plúmbeo devia ser o barulho que o corpo faz ao cair na água.

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres: 

— Defenestras? 

A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam. 

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria assim defenestradores profissionais. 

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo tê-la usado uma ou outra vez, como em: 

— Aquele é um defenestrado. 

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata. Um dia finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino, ato de atirar alguém ou algo pela janela. 

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal,não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração? 

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo. 

— Les defenestrations. Devem ser proibidas. 
— Sim, monsieur le ministre. 
— São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios. 
— Sim, monsieur le ministre.
— Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos. 

Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes. 

— É essa estranha vontade de atirar alguém pela janela, doutor...
— Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar — diz o analista, afastando-se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suite matrimonial, no 17º andar.

— Querida...
— Mmmm?
— Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
— Fala amor.
— Sou um defenestrador.

E a noiva, em sua inocência, caminha para cama:

— Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:

— Fui defenestrado...

Alguém comenta:

— Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar essa crônica. Se ela sair é porque resisti.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Defenestração. In: O nariz e outras crônicas. 6.ed. São Paulo: Ática, 1998. p. 82-84.


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domingo, 27 de julho de 2025

SP, 14 de maio de 2021 (sexta-feira, 02h32)*

domingo, julho 27, 2025 8



A navalha da espada corta tudo o que é onírico e me acende a luz da consciência já perdida. Não é o avassalador que me move a escrever, é o anseio pela tranquilidade que repousa no silêncio compartilhado e nas mãos dadas. 

Eu cresci achando que queria um amor de cinema, que seria um clichê ambulante, desses em que um tromba no outro e a paixão acontece instantaneamente. Eu vivi um amor que acabou como nas tragédias: ele sem memória, sem saber quem sou, sem saber quem éramos. Sufoquei a minha perda, o meu luto e, sobretudo, o meu afeto. Precisava seguir. Demorou muito, mas aqui estou. Aqui caminho. Viva. Viva com ar que enche os meus pulmões e força oxigênio correr pela minha veia.

Anos depois vieram outras pessoas. O que tinha a mesma profissão que a minha; o match do Tinder que atrasou mais de duas horas e o encontro não deu em nada; o cara que flertou de todos os jeitos e surgiu com uma namorada depois que me percebeu apaixonada por ele. Todos hollywodianamente avassaladores. Todos me forçando a nadar e morrer na praia. Logo eu, que não sei nenhum dos quatro tipos de nado.

Estou viva. Cansadamente viva. Quando penso na tarefa de escrever sobre essas feridas me sinto inteira. Hoje elas têm casca, algumas já são cicatriz. Machucados que se fortaleceram porque joguei palavras e mais palavras sobre elas. Oxigênio forçado em cada célula.

Tento me apaixonar gradativamente pela pessoa que vejo todos os dias no espelho. O tempo é implacável e já começa a mostrar os seus sinais. Os cabelos estão diferentes, a pele contém marcas, as rugas iniciam a dominação de território ao redor dos olhos. Há uma dissonância entre a minha mente e o meu corpo. O relacionamento deles já entrou em crise há tempos: a cabeça é jovem, mas os joelhos falam alto com suas dobradiças enferrujadas. "Começa assim sem dor, quando chegar nos 60 a gente conversa", diz minha companheira de aula de Pilates. As areias do tempo teimam em escorrer rio abaixo…

Há mais de um ano que não saio de casa, que não vejo os meus amigos. Tento me lembrar quando foi a última vez que beijei uma boca. Não consigo. A minha relação com o tempo anda mais confusa que a minha vida amorosa. "Todo dia é uma segunda-feira", disse a minha professora de escrita, mas acho que já ouvi outras pessoas falando algo parecido.

Presenciar fatos históricos é algo que sempre me fez me apegar à vida: a morte do Senna, os aviões que caíram perto de casa, a queda das Torres gêmeas, a luta do Mandela. Sempre fui uma espectadora atenta ao meu tempo. Nunca pensei, contudo, que teria que ser participante ativa de um evento que mudaria a vida planetária do avesso, como tem sido esta pandemia. Enfurnada em casa sigo (ontem completei 1 ano e 2 meses em que saí apenas 16 vezes de casa para cumprir tarefas que precisavam de mim impreterivelmente). Continuo sendo categórica na missão de proteger a mim e à minha família. Sigo estrita, restrita, e exaurida.

Minha memória anda tão exausta quanto o meu corpo. Talvez seja por isso mesmo que eu queira muito um relacionamento, mas não mais um amor avassalador. Eu não quero roteiros perfeitos, quero aconchego.

***

Antes de ler sobre a experiência de pessoas negras, eu achava que eu era estranha. Por que eu sempre era a única sozinha? Depois do contato, compreendi tudo. Os pontos se ligaram de um modo que foi só parar para analisar, que fez total sentido. Não à toa todos os caras por quem já tive atração estão se relacionando todos com mulheres brancas, não à toa, o principal deles não quis me assumir, me apresntar para a família e para os amigos. O racismo me atravessa ainda que muita gente não queira me ver como a mulher negra que sou. Existo dilacerada por essa violência que me consome viva todos os dias.

Raised by wolves, stronger than fear**. O Bono sempre grita alguma palavra de ordem na minha cabeça — quer ele queira, quer não. Tento ser maior do que o racismo e continuo lutando. Stronger than fear. Luto por este coração que pulsa insistentemente dentro da minha caixa torácica, ainda que eu ache curioso como os sentidos de guerra e de perda façam simbiose nas quatro letras da palavra "luto". Se verbo, tão repleto de vida; se substantivo, tão cheio de morte; em ambos, tão cheios de dor. A minha cartomante preferida diria que "luto é amor que não tem para onde ir". Talvez por isso mesmo eu escreva, para direcionar o meu amor para o desconhecido que me lê. Sempre amei demais e é isso, o advérbio de intensidade, que tira e, ao mesmo tempo, nutre a minha força.


💚💚💚


*Encontrei este texto nos meus rascunhos da época da pandemia e resolvi compartilhá-lo com vocês.
**Vocês podem ver o U2 cantando Raised by Wolves, clicando aqui (para ler a letra da canção no vídeo, use a função CC/legendas, do YouTube). A música faz parte do álbum Songs of Innocence, lançado em 2014.

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domingo, 20 de julho de 2025

Objeto ônibus em 6 atos

domingo, julho 20, 2025 6
Foto de Ant Rozetsky, via Unsplash.



Dia 01. Terça-feira de manhã fria de outono. 
Chego ao ponto e uma mulher branca de cabelos grisalhos carrega um gatinho na caixa de transportes. Conversamos. O gato vai no mesmo ônibus que eu, fazer um tratamento semanal de saúde. O gato observa pelas frestas da caixa sem miar. Sua dona é faladeira e, como toda gateira, conta não só desse, mas dos outros 5 gatos que ficaram em casa. Falo sobre as minhas duas e de como elas estariam se matando de miar caso estivessem assim: dentro da caixa, em um ponto de ônibus, prestes ao chacoalhar e ao entra e sai de desconhecidos. Sorrimos como duas cúmplices. Gatos e suas personalidades. 

Dia 02. Tarde com sol que esquenta e vento gélido que, por razões óbvias, esfria. 
O ponto está cheio. Entro na lotação, e há um jovem casal de negros falando uma língua que desconheço. Tento entender, mas as palavras me escapam. Sei que é afetuoso, porque eles riem o tempo todo um para o outro. Curiosamente ou não, chego ao meu destino e escuto minha professora dizendo que “o sorriso é linguagem de resistência”. Sorrio eu também ao me lembrar disso. Queria saber que língua era aquela. Juntos, seguimos — mesmo que séculos depois — resistindo. 

Dia 03. Outra manhã de outono. Desta vez, ainda mais gelada.
Ao virar a esquina, encontro minha vizinha. Ela vai comigo até o ponto e resolve pegar o mesmo ônibus que eu só para continuar o cadinho de prosa. Há tempos não nos víamos. Ela me conta da neta de 4 anos e da mãe de quase 90. Ambas, cada uma a seu modo, vivendo de uma inocência sem fim - seja a inocência de quem ainda não sabe nada do mundo; seja a de quem sabe demais dele. Viver é igual e diferente para todos nós: finitude concomitante. Isso é bonito demais. 

Dia 04. Tarde fresca de veranico fora de época. 
Outro micro-ônibus. Na metade do caminho entra um homem. Ele puxa assunto com o rapazote ao seu lado. Todos viajam em silêncio. O rapaz meneia a cabeça como se quisesse encerrar o assunto. O homem diz que na terra dele tudo se resolve na faca, que tinha batido na mulher, que “ela foi embora com um cabra 10 anos mais novo”. O rapaz desviava o olhar. “Fiz questão de ir lá dizer pro cabra que ele tá pegando o resto, eu usei tudo o que tinha para usar”. Dei sorte de poder descer antes que meu estômago se revirasse ainda mais. 

Dia 05. Manhã gelada, quase inverno. 
Subi a ladeira correndo para não perder o ônibus. Cheguei no ponto esbaforida. Corrida à toa. Ele ainda demorou um pouco para sair. Consegui me sentar em um lugar sozinha. Entrou um homem todo tatuado: mãos, braços, pescoço e cabeça. Olhei-o de frente. Talvez ele tenha achado que eu senti medo ou alguma forma de preconceito. A verdade é que eu — com toda a minha fobia de agulha — sempre me pergunto o quanto será que dói tatuar pescoço, nuca e crânio. Sempre penso que as pessoas que aguentam esse tipo de dor são mais fortes do que pensam. Estava perdida nesse pensamento, quando o homem puxou assunto com o cobrador: “esse ônibus volta com qual nome? É que eu sou novo por aqui. Tô ajudando a família da minha amiga, eles estão com esse problema lá na Enel e já ligaram um monte de vezes. Ela trabalha e fora do trabalho fica com a filha pequena, então vou lá tentar resolver por ela”. Como a maioria dos tatuados que eu conheço, o cara é gente boa. O cobrador respondeu dizendo não só que avisaria qual era o ponto mais próximo, mas também lhe deu opções de outras linhas pra volta. Gentilezas. 

Dia 06. Tarde congelante. Véspera de inverno. 
Uma nova lotação. O casal de negros novamente, dessa vez acompanhados pela mãe de um deles. De novo aquela língua bonita e desconhecida. Sentei-me atrás do trio. Queria puxar assunto, mas não sabia se eles falam português ou não. Também não quis interromper a beleza da sonoridade indecifrável e dos sorrisos intercambiáveis a cada fala. Do outro lado do corredor, duas senhoras. Não sei se elas se conheciam. Uma delas, a sentada próxima à janela, sem medo ou vergonha, vasculhava o próprio nariz com o dedo. Limpava o salão sem pudor nenhum. Sem medo do modo que gente, vírus e bactérias poderiam agir diante da situação. Apenas limpando. Apenas sendo feliz. Feliz com a pequena catota retirada a cada avanço do ônibus em direção a um destino que não sei qual é, afinal, desci antes dela.

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domingo, 13 de julho de 2025

Livros que eu comprei n'A Feira do Livro

domingo, julho 13, 2025 2


No post de hoje quero compartilhar quais foram os títulos que comprei na edição de 2025 d'A feira do livro

Como disse neste vlog, não tinha programado comprar muitos livros. A verdade é que me programei para comprar dois e acabei comprando cinco, sendo um deles um presente. 

Aqui, deixo os 4 títulos que passaram a integrar a minha biblioteca. Bora conhecer?




Autoria independente

Wesley e eu, n'A Feira do Livro.


O primeiro título foi do autor maranhense Wesley Moraes. Wesley é poeta, cantor e "gente fina, elegante e sincera". Ele estava conversando com as pessoas e vendendo o livro dele, produzido de forma independente. Além de ser autor, vem de uma família de professores e está se organizando para lançar seu disco. Comprei o livro de poemas Peregrino usado para escrever, que fiz questão que ele autografasse! 😉

Quem quiser conhecer mais do trabalho do autor, basta segui-lo no Instagram: @wes.moraes.




Livro: Peregrino usado para escrever
Autor: Wesley Moraes
Páginas: 46
Editora: publicação do autor
Apresentação: Já perguntaram se eu não fico no tédio / E se é a poesia o remédio, / Que eu uso para me entorpecer.  // Respondi bem rápido e sucinto, / Que o poeta é apenas um ser místico, / Peregrino, usado pra escrever.

Descoberta poética

Adriana Lisboa e Júlia de Carvalho Hansen


Como contei no post passado, no primeiro fim de semana do evento, assisti a uma mesa sobre poesia com a Adriana Lisboa e com a Júlia de Carvalho Hansen. Fiquei encantada pelo trabalho e pelo bom humor da Júlia, com o jeito que ela olha com profundidade visceral pra vida (desde os grandes movimentos como o processo de demência do próprio pai aos pequenos insetos que caminham por aí). Também gosto demais desse misto de poesia e diário. Sendo assim, comprei o livro dela. Este, inclusive, já li. Ano Passado entrou na lista dos meus livros de poemas preferidos. 



Livro: Ano Passado
Autora: Júlia de Carvalho Hansen 
Páginas: 160
Editora: Nós 
Apresentação: O ano passado está sempre se distanciando. Nunca é apenas um. Passa-se um ano e já se torna outro, mais esquecível, nem sempre mais distante. É uma espécie de epíteto dos esquecimentos. O ano passado pode ser o dia anterior, a estação pregressa, pode nem ter acontecido, pode vir-ainda-a-ser. Pode ser “o instante que antecede as coisas”. Neste novo livro, a já consagrada poeta Júlia de Carvalho Hansen diz e desdiz certa ideia de cotidianeidade, a um só tempo tocando o expansivo (os anos, os amores, as tragédias, o país) e o comezinho (também os amores, algumas tragédias, certas noções de país). No entremear delicadíssimo dos versos, chancelados pelo registro diarístico, a autora reivindica a pertinência da atenção à passagem do tempo, ao passo que pontua a chama inapagável do tempo presente: “afinal as tempestades estão cada vez mais severas/ quando não chove os incêndios estão em toda parte/ nós somos os filhos da transição”. Ano passado é o lugar da sutileza e da pungência. Tem a marca do calendário, mas não é contabilizável. Passa, mas não passa nunca, jamais. Lembra persistentemente o leitor: “Você foi ficando vago”. E, ainda assim, o ano passado está aqui, como estamos todos, perenes e para sempre, neste livro marcante, comovente, que veio para permanecer por muitos anos no horizonte da poesia brasileira contemporânea.


Mergulho linguístico 

Meu trabalho — em todas as suas vertentes — é a minha paixão, então eu amo me aperfeiçoar e me aprofundar nele. Desse modo, tinha que ter algum livro relacionado. O da vez é o Na ponta da língua, do Caetano W. Galindo. Ano passado li Latim em Pó e foi uma das minhas leituras preferidas do ano, então, a expectativa para ler o Na ponta da língua é altíssima. 
Eu gosto muito do trabalho do Galindo (ele traduziu os livros da Patti Smith, só para trazer um outro exemplo). Além disso, na interação que tive com ele, ele foi uma pessoa muito gentil. É muito legal saber que somos colegas de profissão 😀

(Um adendo: ele fez a curadoria de uma exposição que está aberta para a visitação lá no Museu da Língua Portuguesa chamada Fala Falar Falares. Ainda não fui, mas quero demais vé-la. As informações, para quem quiser saber mais, estão aqui.)




Livro: Na ponta da Língua
Autor: Caetano W. Galindo
Páginas: 272
Editora: Companhia das Letras
Apresentação: Na ponta da língua não busca ser um mero guia de etimologia. Mais do que ensinar ao leitor a origem das palavras, Caetano W. Galindo -- autor de Latim em pó, êxito de crítica e público -- nos dá as ferramentas para que possamos, também, ser investigadores do nosso português. Tendo o corpo humano como base, numa jornada que vai da cabeça aos pés, Caetano W. Galindo nos ensina os processos históricos que explicam por que nosso pescoço deixou de ser "poscoço" e a ligação inusitada entre o joelho e uma almofada. Enquanto nos divertimos com o humor constante de sua prosa, que corre quase como uma performance cômica, mal notamos que estamos aprendendo os complexos mecanismos que regem as mudanças da língua ao longo dos séculos e os processos ocultos por trás da formação das palavras. Ao final da leitura, nunca mais olharemos um diminutivo "inho" da mesma forma. Uma aula magistral de etimologia sem a menor dor de cabeça -- que, aliás, vem do latim capitia e tem a mesma origem de "chefe".


Aprendizado com a pele

Foto com Lazinho 😍


Eu ainda me lembro do impacto que o Na minha pele me causou, porque foi quando eu estava começando os meus estudos de letramento racial e me entendendo como uma mulher negra. Ali, pela primeira vez, eu notei que algumas experiências que vivi, que julgava ser um problema meu, na verdade não eram exclusivas, eram fruto do racismo estrutural. Mesmo eu não tendo a pele escura, eu venho de uma família interracial e tenho o fenótipo negro (que carrego com orgulho e que me faz honrar cada uma das minhas ancestrais). Aquela dor não era só minha. Era minha, do Lázaro, da Taís e de tantos outros brasileiros. Ao mesmo tempo que foi dolorido, foi libertador. Me senti abraçada por alguém que, finalmente, conseguia não só me entender, mas também colocar em palavras aquele sentimento que me sufocava por anos a fio. 

Dito tudo isso, quando vi que o Lázaro Ramos teria uma mesa e autografaria os livros dele, não tive dúvidas de que queria ouvir o que ele tinha falar e, claro pegar o meu autógrafo (assim como fiz anteriormente com o Na minha pele). 



Livro: Na nossa pele
Autor: Lázaro Ramos 
Páginas: 128
Editora: Objetiva
Apresentação: Em Na nossa pele, um Lázaro mais maduro entrelaça fatos de sua vida íntima com reflexões sobre o ofício de artista e outros temas como as pautas raciais, emancipação e mobilidade social. Ao estabelecer uma ponte com inúmeras outras personalidades negras, mostra como seus pensamentos e ações são forjados numa mesma ancestralidade. Assim, são muitas as vozes que habitam as páginas deste livro. A mais importante delas é a de sua mãe, Célia Maria do Sacramento, que faleceu quando ele tinha apenas dezoito anos. Mais maduro e ciente das complexidades de sua própria história, Lázaro se sente finalmente pronto para compartilhar as memórias da mulher que foi sua maior inspiração.Lázaro também convida seus leitores e leitoras a refletirem sobre a vida e seu lugar no mundo. Partindo da premissa de que não existem respostas simples para questões complexas, acredita que a efetiva conquista da emancipação, a individual e a coletiva, é ainda um enorme desafio. Devemos retomar a aparentemente velha e esquecida ideia de que o melhor caminho é aquele que inclui a equidade, o valor à vida, o respeito às diferenças, o cuidado com o meio ambiente, a proteção à infância e a retomada da alegria -- mas não a alegria que anestesia, e sim a alegria revolucionária, transformadora. Do lançamento de Na minha pele para cá, muita coisa mudou. Foram inúmeras as conquistas, e Lázaro comemora cada uma delas, mas será que a importante e necessária ascensão da população negra já alcançou toda a sua plenitude?

Em resumo...

...eu fiquei feliz demais, porque eu comprei livros de autores brasileiros (ainda saí com 3 dos 4 deles autografados). É legal demais poder movimentar o mercado dos livros lendo os meus contemporâneos. 😀

Agora me conte: você já leu algum desses livros? Quais são os livros que você está lendo por esses dias?


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