domingo, 20 de julho de 2025

Objeto ônibus em 6 atos

Foto de Ant Rozetsky, via Unsplash.



Dia 01. Terça-feira de manhã fria de outono. 
Chego ao ponto e uma mulher branca de cabelos grisalhos carrega um gatinho na caixa de transportes. Conversamos. O gato vai no mesmo ônibus que eu, fazer um tratamento semanal de saúde. O gato observa pelas frestas da caixa sem miar. Sua dona é faladeira e, como toda gateira, conta não só desse, mas dos outros 5 gatos que ficaram em casa. Falo sobre as minhas duas e de como elas estariam se matando de miar caso estivessem assim: dentro da caixa, em um ponto de ônibus, prestes ao chacoalhar e ao entra e sai de desconhecidos. Sorrimos como duas cúmplices. Gatos e suas personalidades. 

Dia 02. Tarde com sol que esquenta e vento gélido que, por razões óbvias, esfria. 
O ponto está cheio. Entro na lotação, e há um jovem casal de negros falando uma língua que desconheço. Tento entender, mas as palavras me escapam. Sei que é afetuoso, porque eles riem o tempo todo um para o outro. Curiosamente ou não, chego ao meu destino e escuto minha professora dizendo que “o sorriso é linguagem de resistência”. Sorrio eu também ao me lembrar disso. Queria saber que língua era aquela. Juntos, seguimos — mesmo que séculos depois — resistindo. 

Dia 03. Outra manhã de outono. Desta vez, ainda mais gelada.
Ao virar a esquina, encontro minha vizinha. Ela vai comigo até o ponto e resolve pegar o mesmo ônibus que eu só para continuar o cadinho de prosa. Há tempos não nos víamos. Ela me conta da neta de 4 anos e da mãe de quase 90. Ambas, cada uma a seu modo, vivendo de uma inocência sem fim - seja a inocência de quem ainda não sabe nada do mundo; seja a de quem sabe demais dele. Viver é igual e diferente para todos nós: finitude concomitante. Isso é bonito demais. 

Dia 04. Tarde fresca de veranico fora de época. 
Outro micro-ônibus. Na metade do caminho entra um homem. Ele puxa assunto com o rapazote ao seu lado. Todos viajam em silêncio. O rapaz meneia a cabeça como se quisesse encerrar o assunto. O homem diz que na terra dele tudo se resolve na faca, que tinha batido na mulher, que “ela foi embora com um cabra 10 anos mais novo”. O rapaz desviava o olhar. “Fiz questão de ir lá dizer pro cabra que ele tá pegando o resto, eu usei tudo o que tinha para usar”. Dei sorte de poder descer antes que meu estômago se revirasse ainda mais. 

Dia 05. Manhã gelada, quase inverno. 
Subi a ladeira correndo para não perder o ônibus. Cheguei no ponto esbaforida. Corrida à toa. Ele ainda demorou um pouco para sair. Consegui me sentar em um lugar sozinha. Entrou um homem todo tatuado: mãos, braços, pescoço e cabeça. Olhei-o de frente. Talvez ele tenha achado que eu senti medo ou alguma forma de preconceito. A verdade é que eu — com toda a minha fobia de agulha — sempre me pergunto o quanto será que dói tatuar pescoço, nuca e crânio. Sempre penso que as pessoas que aguentam esse tipo de dor são mais fortes do que pensam. Estava perdida nesse pensamento, quando o homem puxou assunto com o cobrador: “esse ônibus volta com qual nome? É que eu sou novo por aqui. Tô ajudando a família da minha amiga, eles estão com esse problema lá na Enel e já ligaram um monte de vezes. Ela trabalha e fora do trabalho fica com a filha pequena, então vou lá tentar resolver por ela”. Como a maioria dos tatuados que eu conheço, o cara é gente boa. O cobrador respondeu dizendo não só que avisaria qual era o ponto mais próximo, mas também lhe deu opções de outras linhas pra volta. Gentilezas. 

Dia 06. Tarde congelante. Véspera de inverno. 
Uma nova lotação. O casal de negros novamente, dessa vez acompanhados pela mãe de um deles. De novo aquela língua bonita e desconhecida. Sentei-me atrás do trio. Queria puxar assunto, mas não sabia se eles falam português ou não. Também não quis interromper a beleza da sonoridade indecifrável e dos sorrisos intercambiáveis a cada fala. Do outro lado do corredor, duas senhoras. Não sei se elas se conheciam. Uma delas, a sentada próxima à janela, sem medo ou vergonha, vasculhava o próprio nariz com o dedo. Limpava o salão sem pudor nenhum. Sem medo do modo que gente, vírus e bactérias poderiam agir diante da situação. Apenas limpando. Apenas sendo feliz. Feliz com a pequena catota retirada a cada avanço do ônibus em direção a um destino que não sei qual é, afinal, desci antes dela.

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