domingo, 3 de abril de 2016

Paradigmas

Foto por Sara D. sob licença Creative Commons.

Era uma tarde de sexta, quando Ana deixou o trabalho. O dia havia sido logo demais. O cansaço lhe vencia a mente. Estar naquele ônibus lotado a deixava deprimida, ainda mais com o calor que fazia. Sentia o suor evaporando dos corpos que a circundavam, como se aquela mistura de cheiros e alta temperatura enclausurasse não apenas os humanos daquele pequeno espaço, mas todos os seus pensamentos.

Resolveu descer alguns pontos antes de casa. Roupas para passar, jantar para fazer, estar linda para o marido. O peso de ser a esposa perfeita quando a perfeição é impossível. Como não desejar fugir de tudo isso? Criança para cuidar, depois de um dia inteiro no barulho. Tem que ajudar a fazer o dever, tomar banho, por para dormir. E a energia para tudo isso? Cuidar de todos, todos os dias. Mas, pobre Ana, quem cuidará dela quando ela não é capaz de ter o próprio silêncio?

A praça estava cheia de transeuntes indo e vindo, com suas narrativas pessoais e falatórios. Ana, aquele pequeno ponto em meio a multidão, via-se sem saída para o seu sentimentalismo. Como lidar com as perdas? Como ser grata quando não se quer sair da cama? Queria viver aventuras. Queria ser tão feliz na vida conjugal, quanto via nas fotos que as amigas postam nas redes sociais. Queria… Pegou-se fazendo os mesmos caminhos de sempre, no mesmo ritmo corrido de sempre, sem ao menos se dar conta deles. Como um zumbi que segue em piloto automático, Ana caminhava por uma jornada sem volta e sem fim.

“Moça, moça, me compra um balão?”

Uma voz a interpelava vinda de um lugar que ela ainda não tinha se dado conta e a fez sair do transe existencial de sua mente. Virou-se. Um pequeno menino a encarava, com seu olhos de jabuticaba e um sorriso encabulado.

“Oi moça, você pode me dar um balão para eu brincar com a minha irmã”.

Ana hesitou. Aquela criança a pegou de surpresa. Analisou rapidamente o menino: franzino, com os pés descalços, o pequeno mantinha certa distância, provavelmente, para que a tal moça não pensasse que ele era um assaltante. As pessoas continuavam indo e vindo, o sol se punha em um piscar, mas ali estava uma Ana chocada pela imprevisibilidade de ter aquela pequena criatura que a observava com curiosidade.

“Moça?”
“Sim, claro”.

Caminharam até o vendedor do outro lado da praça. O menino seguia feliz. Ana, emocionada.

“Quantos anos tem a sua irmã?”

Ele mostra com os seus dedinhos o número três. Ela continua: “E você?”. “Cinco”.

“Olá, me vê um balão. Pode escolher! Na verdade, pode escolher dois: um para ela e outro para você”.

“Obrigada, moça”.
“De nada, vá com Deus”.

Ele saiu correndo, com seus pés a flutuarem pelo chão sujo do centro da cidade. Estava feliz, por poder levar um balão para a esquina que chama de lar. Ana também seguiu para casa. Agora, refletia sobre a situação, aquela figura que não quis comida ou um trocado, mas sim, um balão. Como as pequenas coisas poderiam ser tão significativas? Tentou chorar; mas, apesar da comoção, não conseguiu.


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8 comentários:

  1. Fê, que texto bonito!
    O engraçado é que essas coisas acontecem de verdade, as vezes estamos fazendo as coisas no automático e nos esbarramos em alguma situação que nos tira do nosso "universo paralelo" e depois de terminada permanece tomando espaço na nossa cabeça.
    Gostei do texto!

    Um beijo!
    Aline

    Inventando Assunto

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    1. Pois é, Aline.
      Certa vez passei por algo parecido (que serviu de inspiração para este texto). É algo que nos tira do eixo!

      Beijos

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  2. Eu estou com lágrimas nos olhos por alguma razão. Mesmo não sendo como Ana e nem tendo responsabilidades e pressões como ela tem, acho que é muito normal cair na rotina.
    Corremos dela, mas às vezes é tão inevitável, não é mesmo? E então os detalhes nos trazem cor outra vez e amamos viver.
    Presos nesse círculo, a vida passa.
    Amei esse texto.
    De verdade.

    Beijos,
    Bi.

    - www.naogostodeunicornios.com

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    1. Oi, Bi!

      Fiquei surpresa e feliz com a emoção que o meu texto lhe causou. A rotina muitas vezes nos embrutece de tal forma, que às vezes precisamos de algo que mexa com os nossos eixos.

      Obrigada por comentário tão sincero!

      Beijos

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  3. A Ana não chorou,mas eu sim,rs.
    Acho que a sociedade hoje precisa entender isso: amar o próximo nos faz bem.Quando estamos no nosso pior momento, sempre aparece aquela pessoa que precisa de você e quando nos dispomos..isso é tão lindo :)
    Incrível texto.,

    Beeijão flor :)
    http://carolhermanas.blogspot.com.br/

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    1. Concordo com você, Carol.
      Fazer o bem atrai o bem.

      Beijos e obrigada por captar a essência do meu texto! ;)

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  4. Gente, que lindeza. Me identifiquei demais com a Ana! Acho que eu choraria diante de um pedido desses.
    O trecho "pobre Ana, quem cuidará dela quando ela não é capaz de ter o próprio silêncio?" define como tenho me sentido ultimamente e não é legal :/

    Beijos,
    Kemmy - Duas Leitoras|Vem participar da resenha premiada e top comentarista de abril ♥

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    Respostas
    1. Oi, Kemmy!
      Também entendo esse sentimento de não conseguir ouvir o próprio silêncio e o quanto isso é sufocante.
      Espero que tudo dê certo por aí!
      Beijos!

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