quarta-feira, 30 de março de 2016

Cidade de Lego

Vista da chegada a Buenos Aires.

Naquele dia frio de inverno minhas mãos estavam trêmulas. Era a primeira vez que deixaria tudo para trás. Dá para transportar uma vida em uma única mala? A balança do aeroporto dizia que a minha bagagem pesava 15 quilos, mas as pessoas ao meu redor mal poderiam suspeitar que no meu peito eu carregava uma coragem banal e invisível, de que secretamente me orgulhava. Deixar o país. Eu, aquela que mal muda de bairro, abandonava pai, mãe, irmã, emprego, razão, livros, coleção, coração partido, desilusões diversas. Partia deixando tudo para trás.

As nuvens e a sensação de vazio. A expectativa e o medo de algo sair errado. Havia planejado tudo tão bem... O que poderia não dar certo? Logo vieram a conversa fiada no avião, o desvio de rota ao confrontar a frente fria, a turbulência, a permissão de pouso e a cidade, que deixava de ser quadradinhos marrons, e se aproximava. Avião no chão. Outro idioma, outras gentes. Eu ali.

Não me recordo o nome do motorista que nos conduziu de Ezeiza à calle Suipacha. Lembro-me apenas das dicas de vinho e de uma anedota de infância que ele nos contou de maneira simpática, dando-me o tempo necessário para traduzir o que era dito à minha amiga. Em cerca de quarenta minutos de trajeto, aquele carismático senhor conseguiu desconstruir tudo o que tinha ouvido sobre a frieza dos hermanos.

“O argentino pode ser extremamente cortês, não terno”, diria Cecília Meireles, que justificava a fama gélida dos portenhos pela herança espanhola que, em suas palavras, é mais dramática que a portuguesa. Mas, ao contrário do que muitos brasileiros afirmam, me atraio justamente pelo calor que vejo neste drama de forma binária. Ouvir o espanhol de sotaque carregado faz o meu coração transbordar. Perceber como o meu segundo idioma ressurge das catacumbas de minha memória é algo esplêndido. Se os amigos são os irmãos que escolhemos, a língua estrangeira aprendida é a terra em que resolvemos descansar. Ouvir as conversas entrecortadas dos transeuntes só me convencia cada vez mais disso.

A calle Suipacha é muito mais acolhedora pessoalmente do que vista pelo Google Street View. Seus prédios antigos, a igreja de São Miguel Arcanjo, o asfalto de paralelepípedo, o pequeno comércio local. Tudo me levou a uma outra dimensão que respira a História por todos os poros. De uma maneira que só os argentinos são capazes de pensar, aquela ruazinha consegue se manter a parte da agitação do Obelisco e da Casa Rosada – nossos primeiros passeios turísticos.

O entardecer veio em frente ao local de trabalho da então presidente, Cristina Kirchner. O soldado, em sua serenidade, recolheu uma bandeira hasteada na Plaza de Mayo, uma entre um milhão das que flamulavam alegremente nos topos dos prédios, enquanto o grupo de italianos tirava todos os tipos de selfies possíveis. A esta altura, o sol já se punha no ocidente, e as luzes da cidade ressaltavam a beleza arquitetônica das construções; sobretudo, a da Catedral Metropolitana, onde uma missa acontecia enquanto os turistas iam e vinham. Entretanto, o primeiro ponto que mais despertou a minha curiosidade foi o ritmo. As pessoas, ao contrário do que acontece em São Paulo, não se deslocam freneticamente. O andar, para os argentinos, é quase um ritual. Enquanto vai e vem, cada um se deixa encantar pela vista, pelas praças e por suas árvores transformando as calçadas em um tapete de folhas secas. Esta calma me traz de volta ao eixo que desejo para a minha vida; mas que, de alguma maneira, sei só consigo viver quando caminho por aquelas calles.

Aproveitamos a primeira saída para comprar alfajores. A urgência, no entanto, não era a de provar o famoso doce argentino, mas a de satisfazer as perguntas dos amigos brasileiros, que enfestavam as redes sociais, querendo saber o que minha amiga e eu pensávamos sobre tal iguaria. Durante aquela semana, transitamos entre Havanna, Cachafaz, Tito e Guaymallen, mas o que ganhou os nossos corações foi o Oreo com sua camada dupla de doce de leite. Eu sei, nada tradicional, mas muito saboroso.

Por outro lado, não posso dizer que não provamos da tradição. O café da manhã e suas medialunas, o almoço e suas milanesas con papas fritas, a pizza de muçarela na Güerrin e o vinho nosso de cada dia. Todos eles contribuindo para que eu não sentisse nem um pouco de falta do nosso bom e velho arroz com feijão.

Dizem que o primeiro contato com um lugar é sempre mágico. Com Buenos Aires não poderia ser diferente. Foi ali que vi os maras comendo nas mãos das pessoas, um museu que também é barco, os cachorros de Tigre preferindo o banho de sol à agitação das crianças, a artesã do mercado de pulgas, a história da Evita diante dos meus olhos. Isso reforçou aquele amor à primeira visita, que senti ao avistá-la na chegada, pela pequena janela do avião. A paixão, que me silenciou por minutos, é a culpada por trazer o desejo de dançar este tango mais vezes. Afinal, como não se emocionar com a beleza de uma cidade que vista do alto parece ser de lego?

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8 comentários:

  1. Oi Fê, que texto incrível! Me deixou com muita vontade de conhecer sua segunda morada.
    O medo do desconhecido é normal, mas a sensação de descoberta, de liberdade em um destino novo é indescritível não é? Eu ainda não sai do país, mas já estou encaminhando uma viagem internacional, então estou super na expectativa. Atualmente minha cidade do coração é Floripa, que eu conheci ano passado e me apaixonei. Inclusive foi lá que experimentei Empanadas Argentinas!
    Adorei a forma como você contou das primeiras impressões, do medo... Viajar é maravilhoso, é libertador e uma experiência de amadurecimento sem igual!

    Um beijo,
    Li
    Inventando Assunto

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    1. Oi, Aline!
      Acho que esta expectativa é mesmo surreal! Mais legal ainda é ver que td deu certo no fim!

      Fico feliz que você tenha gostado do texto. Sou louca pra ir a Floripa e super recomendo Buenos Aires. ;)

      Beijos

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  2. Nossa realmente deve ser mágico toda essa mudança na sua vida. Embora assustadora a princípio a recompensa é reconfortante. Boa sorte nessa sua nova fase e que as adversidades não te impessa de aproveitar cada segundo. Um abraço.

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    1. Oi, Julieta!
      Esta crônica foi escrita a partir da experiência de viagem que tive em julho do ano passado. De qualquer maneira, obrigada pelos desejos de boa sorte (porque pretendo voltar para lá!).

      Beijos,

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  3. Nossa FER
    QUE DELICIA!
    Fiquei morrendo de vontade de ir pra Buenos Aires e sou dessas que nunca deixou nem Sao Paulo, quanto mais sair do pais hahaha
    amei amei
    sucesso nessa fase!!
    falando em a bela e a fera - MININA saiu um livro da fera, queria ver se é bom haha
    Um beijo!
    Pâm - www.interruptedreamer.com

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    1. Pâm, esta é uma experiência que eu recomendo a todo mundo. Amo Buenos Aires e moraria lá em um piscar de olhos.
      Espero que você possa passar por isso algum dia!

      Beijos

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  4. Cidade de lego foi boa kkk sempre quis ir aí, quem sabe um dia!!!

    ❣ Blog ❣ www.amigadelicada.com ❥

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